PAISAGEM COM GRÃO DE AREIA
22 de abril de 2015

Areia & Mar
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o homem, para viver por entre as coisas, antes, precisa pensar as coisas.

o homem, para viver por entre as coisas, precisa nomeá-las, ordená-las, classificá-las, conceituá-las, a fim de que o mundo não lhe seja um completo caos.

o mundo é mudo. o grão de areia não se diz grão de areia, o lago não se diz lago, o mar não se diz mar, o tempo não se sabe tempo: as coisas, no mundo, apenas estão, as coisas apenas são, sem questionar, sem perguntar, sem pressupor, as coisas apenas seguem o seu caminho de coisas.

lagos & rios & mares & pedras não se pensam “fundo” ou “raso”, “grande” ou “pequeno”, “belo” ou “feio”, “rápido” ou “devagar”, “seco” ou “molhado”: somos nós quem pensamos as coisas desse modo, somos nós quem precisamos conceituar, classificar, categorizar, as coisas no mundo mudo, na tentativa de apreendê-las, de ordená-las, de compreendê-las.

o grão de areia ter caído no parapeito da janela é uma aventura nossa, aventura de quem assistiu à queda, aventura de quem imaginou a cena, e não de quem a vivenciou (o grão de areia): para ele é o mesmo que ter caído em qualquer coisa, sem a certeza de já ter caído, ou de ainda estar caindo.

da janela avista-se uma bela paisagem, mas a paisagem não vê a si mesma. existe, neste mundo, sem cor & sem forma, sem som, sem cheiro, sem dor (“cor”, “forma”, “som”, “cheiro”, “dor”: conceitos que criamos para as coisas no mundo, na tentativa de apreendê-las, apreendê-las a fim de vivenciá-las).

o fundo do lago não possui fundo, nem margem as suas margens, e sua água, nem molhada nem seca (“fundo”, “superfície”, “margem”, “meio”, “molhado”, “seco”: conceitos que criamos para as coisas no mundo, na tentativa de apreendê-las, apreendê-las a fim de vivenciá-las).

nem singular nem plural a onda que murmureja surda ao seu próprio murmúrio, ao redor de pedras nem grandes nem pequenas (“singular”, “plural”, “murmúrio”, “silêncio”, “grande”, “pequeno”: conceitos que criamos para as coisas no mundo, na tentativa de apreendê-las, apreendê-las a fim de vivenciá-las).

e tudo isso por debaixo de um céu, por natureza, inceleste, no qual o sol se põe, na verdade, não se pondo, e se oculta, não se ocultando, atrás de uma nuvem insciente, nuvem que oculta o sol sem a consciência de ocultá-lo (“celeste”, “terreno”, “aquático”, “nascente”, “poente”, “ocultar”, “revelar”: conceitos que criamos para as coisas no mundo, na tentativa de apreendê-las, apreendê-las a fim de vivenciá-las).

o vento varre a nuvem, onde o sol se ocultava, sem outra razão que a de ventar.

passa um segundo. dois segundos. três segundos. mas são três segundos somente nossos, porque o tempo não se sabe tempo (“passado”, “presente”, “futuro”, “ontem”, “hoje”, “amanhã”, “dia”, “mês”, “ano”: conceitos sem os quais o bicho homem não conseguiria fazer valer a sua existência no mundo).

“o tempo correu como um mensageiro com notícias urgentes”: a sentença é só um símile nosso, a sentença é só uma metáfora, criada à nossa imagem & semelhança: uma personagem inventada (o tempo mensageiro), a sua pressa imposta (o tempo é sempre o mesmo a passar, não corre nem desacelera), e a notícia inumana (o tempo não é mensageiro de coisa alguma nem tampouco carrega notícia — ele não nos fala, ele não nos escuta, ele não nos enxerga: alheio a tudo & todos).

o tempo passa, parado no tempo, para que passemos, transitórios & perecíveis.

o mundo é mudo. e a experiência humana, um grande delírio detido em palavras.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Poemas. autora: Wislawa Szymborska. tradução: Regina Przybycien. editora: Companhia das Letras.)

 

 

PAISAGEM COM GRÃO DE AREIA

 

Nós o chamamos de grão de areia.
Mas ele mesmo não se chama de grão, nem de areia.
Dispensa um nome
geral, particular
passageiro, permanente,
errado ou apropriado.

De nada lhe serve nosso olhar, nosso toque.
Não se sente olhado nem tocado.
E ter caído no parapeito da janela
é uma aventura nossa, não dele.
Para ele é o mesmo que cair em qualquer coisa
sem a certeza de já ter caído,
ou de ainda estar caindo.

Da janela há uma bela vista para o lago,
mas a vista não vê a si mesma.
Existe neste mundo
sem cor e sem forma,
sem som, sem cheiro, sem dor.

Sem fundo o fundo do lago
e sem margem as suas margens.
Nem molhada nem seca a sua água.
Nem singular nem plural a onda
que murmureja surda ao seu próprio murmúrio
ao redor de pedras nem grandes nem pequenas.

E tudo isso sob um céu por natureza inceleste,
no qual o sol se põe na verdade não se pondo
e se oculta não se ocultando atrás de uma nuvem
…………………………………………………………………..[insciente.
O vento a varre sem outra razão
que a de ventar.

Passa um segundo.
Dois segundos.
Três segundos.
Mas são três segundos somente nossos.

O tempo correu como um mensageiro com notícias
…………………………………………………………………..[urgentes.
Mas isso é só um símile nosso.
Uma personagem inventada, a sua pressa imposta
e a notícia inumana.

NUVENS
15 de julho de 2014

Nuvens

Nuvens & Cadeia de montanhas

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Céu, tão grande é o céu
E bandos de nuvens que passam ligeiras
Pra onde elas vão, ah, eu não sei, não sei

(Canção: Dindi. Versos: Aloysio de Oliveira. Música: Tom Jobim.)

 

 

eu sempre fui um admirador de muitas coisas da natureza.

o mar é o meu amante maior, é a coisa que mais me fascina, que mais prende a minha atenção.

uma outra coisa que me fascina é árvore, ser carregado de folhas & dramaticidade. suas ramificações & galhos, juntamente com as suas folhas, dispõem-se aos meus olhos como braços & mãos em poses dramáticas, em poses teatrais.

coisa também que me fascina é pedra, sua constituição maciça, inteiriça, inerte, inanimada, silenciosa, parada no tempo, pregada ao chão.

e, por fim, coisa também fascinante, que é o inversamente proporcional às pedras, é nuvem.

pelo motivo inverso ao das pedras (sua constituição maciça, inteiriça, inerte, inanimada, silenciosa, parada no tempo, pregada ao chão), eu adoro olhar nuvens. desde muito novo.

para descrever as nuvens, eu necessitaria ser muito rápido — numa fração de segundo, deixam de ser as que são, tornam-se outras.

é próprio delas não se repetir nunca nas formas, matizes, poses & composição.

sem o peso de nenhuma lembrança, as nuvens flutuam, sem esforço, sobre os fatos mundanos.

elas — as nuvens — lá podem ser testemunhas de alguma coisa?

logo se dispersam para todos os lados.

comparada com as nuvens, passageiras & ligeiras & mutáveis por demais, a vida, que também é passageira & ligeira & mutável por demais, parece muito sólida, parece quase perene, quase ininterrupta, praticamente eterna.

perante as nuvens, até a pedra parece uma irmã em quem se pode confiar, devido à sua constituição maciça, inteiriça, inerte, inanimada, silenciosa, parada no tempo, pregada ao chão.

já elas, as nuvens — são primas distantes & inconstantes.

(é próprio delas não se repetir nunca nas formas, matizes, poses & composição.)

que as pessoas vivam, se quiserem, e, em seqüência, que cada uma, que cada pessoa, morra: as nuvens nada têm a ver com toda essa coisa muito estranha a que chamamos: existência.

sobre a tua vida inteira, caro leitor, e sobre a minha vida, ainda incompleta, elas, as nuvens, passam pomposas, como sempre passaram.

as nuvens não têm obrigação de conosco findar.

as nuvens não precisam ser vistas para navegar.

nuvens: é próprio delas não se repetir nunca nas formas, matizes, poses & composição. sem o peso de nenhuma lembrança, as nuvens flutuam, sem esforço, sobre os fatos mundanos.

pelo motivo inverso ao das pedras (sua constituição maciça, inteiriça, inerte, inanimada, silenciosa, parada no tempo, pregada ao chão), eu adoro olhar nuvens (numa fração de segundo, deixam de ser as que são, tornam-se outras). desde muito novo.

a cabeça nas nuvens, os olhos no céu: a tentativa, em solo, dos mais altos vôos.

beijo todos!
paulo sabino.
___________________________________________________________________

(do livro: Poemas. autora: Wislawa Szymborska. seleção & tradução: Regina Przybycien. editora: Companhia das Letras.)

 

 

NUVENS

 

Para descrever as nuvens
eu necessitaria ser muito rápida —
numa fração de segundo
deixam de ser estas, tornam-se outras.

É próprio delas
não se repetir nunca
nas formas, matizes, poses e composição.

Sem o peso de nenhuma lembrança
flutuam sem esforço sobre os fatos.

Elas lá podem ser testemunhas de alguma coisa —
logo se dispersam para todos os lados.

Comparada com as nuvens
a vida parece muito sólida,
quase perene, praticamente eterna.

Perante as nuvens
até a pedra parece uma irmã
em quem se pode confiar,
já elas — são primas distantes e inconstantes.

Que as pessoas vivam, se quiserem,
e em sequência que cada uma morra,
as nuvens nada têm a ver
com toda essa coisa
muito estranha.

Sobre a tua vida inteira
e a minha, ainda incompleta,
elas passam pomposas como sempre passaram.

Não têm obrigação de conosco findar.
Não precisam ser vistas para navegar.

POSSIBILIDADES: ALGUNS GOSTAM DE POESIA
20 de fevereiro de 2013

Paulo Sabino_Amante da poesia

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 preferência / predileção: ação de escolher uma coisa entre outras.
 
se a preferência / predileção implica em escolha, o escolhido é uma possibilidade entre outras possibilidades.
 
a preferência / predileção implica em possibilidades de escolha:
 
prefiro os parques de área verde.
 
prefiro os cachorros.
 
prefiro chico buarque a cole porter.
 
prefiro-me gostando das pessoas do que amando a humanidade (amar a humanidade é amar todos. e, no mundo, há pessoas de que não gosto, pessoas com quem não simpatizo).
 
prefiro a cor azul.
 
prefiro não achar que a razão é a culpada de tudo (os impulsos & arroubos têm o seu lugar no mundo).
 
prefiro conversar, se encontro algum médico (amigo ou apenas conhecido), sobre outra coisa que não seja doença.
 
prefiro, no amor, os aniversários não marcados — para celebrá-los todos os dias.
 
prefiro a bondade astuta (que não se deixa enganar, esperta, matreira) à bondade confiante demais (a bondade que confia em si demasiadamente não pondera, não questiona, se, de fato, está sendo boa).
 
prefiro a terra à paisana, prefiro a terra sem fardas & armas & toques de recolher.
 
prefiro os países conquistados aos conquistadores.
 
prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem (ao menos no caos estou em ordem com o mundo: confuso desordenado desarrumado inexplicável).
 
prefiro os contos de machado de assis às manchetes dos jornais.
 
prefiro os cães sem a cauda cortada.
 
prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
 
prefiro muitas coisas que não mencionei aqui a muitas outras também não mencionadas.
 
prefiro os zeros soltos do que postos em fila para formar cifras.
 
prefiro o tempo dos insetos (breve) ao das estrelas (eterno).
 
prefiro desvirar o chinelo com a sola para cima.
 
prefiro não perguntar quanto tempo ainda & quando (desejo apenas viver o quanto me for permitido viver).
 
prefiro, inclusive, ponderar, prefiro questionar, a própria possibilidade do ser ter sua razão: será o homem, de fato, um ser pensante, um ser racional? ou, no fundo, um lunático, ser que fundou um mundo de fábulas & fantasias, recheado de deuses, significações absurdas & acontecimentos desastrosos (guerras, escravidões, fome, depredação do meio ambiente)? 
 
porém, independentemente de tudo & mais um pouco:
 
prefiro o ridículo de escrever poemas ao ridículo de não escrevê-los.
 
alguns gostam de poesia. “alguns” — ou seja: nem todos.
 
e esses “alguns” — que gostam de poesia — não chegam a ser a maioria de todos, mas a minoria.
 
(sem contar a escola, onde o estudo de literatura é obrigatório & os próprios poetas seriam talvez uns dois num universo de mil alunos.)
 
alguns — a minoria de todos — gostam de poesia. mas também se gosta de canja de galinha, gosta-se de galanteios, gosta-se da cor azul, gosta-se de fazer o que se tem vontade.
 
no mundo, gosta-se de inúmeras coisas. a poesia — para muitos dos “alguns” que gostam — está apenas entre as tantas outras coisas de que se gosta. desse modo, a poesia — para muitos dos “alguns” que gostam — pode tornar-se um “item” apreciado porém esquecido no fundo de uma gaveta empoeirada ou de um velho baú.
 
alguns gostam de poesia… mas o que é isso: “poesia”?
 
muita resposta já foi dada a essa pergunta & até hoje não se chegou a um consenso. portanto, qualquer resposta é vaga, qualquer resposta deixa a desejar, qualquer resposta não responde exatamente:
 
o que é isso — “poesia”?
 
pois eu digo que não sei, não sei & não sei, e, mesmo não sabendo a resposta, me agarro a ela como a uma tábua de salvação.
 
(a poesia aguça minha inteligência, a poesia melhora meu humor, a poesia me livra das azias existenciais, a poesia imprime ritmo à minha vida.)
 
salve a sua existência na minha!
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Poemas. autora: Wislawa Szymborska. seleção & tradução: Regina Przybycien. editora: Companhia das Letras.)
 
 
 
POSSIBILIDADES
 
 
Prefiro o cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro Dickens a Dostoiévski.
Prefiro-me gostando das pessoas
do que amando a humanidade.
Prefiro ter agulha e linha à mão.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não achar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as exceções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar sobre outra coisa com os médicos.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não escrevê-los.
Prefiro, no amor, os aniversários não marcados,
para celebrá-los todos os dias.
Prefiro os moralistas
que nada me prometem.
Prefiro a bondade astuta à confiante demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos conquistadores.
Prefiro guardar certa reserva.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de Grimm às manchetes dos jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães sem a cauda cortada.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que não mencionei aqui
a muitas outras também não mencionadas.
Prefiro os zeros soltos
do que postos em fila para formar cifras.
Prefiro o tempo dos insetos ao das estrelas.
Prefiro bater na madeira.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro ponderar a própria possibilidade
do ser ter sua razão.
 
 
 
ALGUNS GOSTAM DE POESIA
 
 
Alguns —
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.
 
Gostam —
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se de galanteios e da cor azul,
gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade
gosta-se de afagar um cão.
 
De poesia —
mas o que é isso, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso
como a uma tábua de salvação.