COISA EM SI
16 de maio de 2015

Ovo
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toda & qualquer coisa é composta de outras tantas coisas.

não existe “coisa em si”.

toda & qualquer coisa forma uma identidade. identidade que se forme, que se molde, que se construa, sem que tenda para alguma coisa, sem que sofra a influência de alguma coisa, sem que penda para algum lado, sem que dependa de alguma outra coisa, não existe.

tudo tende, pende, depende.

tudo, até as palavras: não há nenhuma palavra que exista “em si”, que exista sem que haja, nela, algo que também forme, também molde, também construa, outras palavras: tende / pende / depende.

palavra puxa palavra.

o mar, que molha a ilha, molha o continente.

o ar que se respira traz o que recende, o que exala, o que se espalha. o ar que injetamos nos pulmões é o mesmo que, livre, toca o cheiro das coisas & o traz, de longe, até nós.

tudo é rente, é próximo, é contíguo. tudo é tangente, é tocável, é acessível. tudo é inerente, é dependente, é inseparável.

tudo é rente, tangente, inerente.

tudo, até as palavras: não há nenhuma palavra que exista “em si”, que exista sem que haja, nela, algo que também forme, também molde, também construa, outras palavras: rente / tangente / inerente.

palavra puxa palavra.

não existe coisa assim: isenta, sem ambiente, coisa partida do seu próprio pó, sem mistura, coisa sem sombra na parede, coisa sem margem ou afluente que a alcance, que a toque: as coisas existem & necessariamente, obrigatoriamente, estabelecem inter-relações: não há coração sem mente, não há paraíso sem serpente. não existiria som se não houvesse o silêncio. não haveria luz se não fosse a escuridão.

a vida é mesmo assim: dia & noite, não & sim.

“coisa em si” inexiste.

só existe o que se sente, só existe o que é percebido através dos sentidos. uma coisa, mesmo que exista, se não for sentida por nós, isto é, se não for percebida por nós, essa coisa não existe para nós. para que exista para nós, portanto, as coisas precisam, as coisas dependem, as coisas necessitam, as coisas carecem, existir, antes, para os nossos sentidos.

tudo tende, pende, depende. tudo é rente, tangente, inerente.

não existe “coisa em si”.

a miscigenação, a mistura, a mesclagem, a influência, a tendência, a confluência, sempre foi & sempre será o caminho de toda & qualquer coisa.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: ET  Eu  Tu. poemas: Arnaldo Antunes. fotos: Marcia Xavier. editora: Cosac & Naify.)

 

 

coisa em si
não existe

tudo tende
pende
depende

o mar que molha
a ilha molha
o continente

o ar que se
respira traz
o que recende

coisa em si
não existe

tudo é rente
tangente
inerente

pedra
assemelha
semente

sol nascente:
sol poente

coisa em si
não existe

mesmo que
aparente

coisa em si
coisa só
partida do seu
próprio pó

sem sombra
sobre
a parede

sem mar
gem
ou afluente

não existe
coisa assim

isenta
sem ambiente

não há coração
sem mente

paraíso
sem serpente

coisa em si
inexiste

só existe
o que se
sente

PAISAGEM COM GRÃO DE AREIA
22 de abril de 2015

Areia & Mar
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o homem, para viver por entre as coisas, antes, precisa pensar as coisas.

o homem, para viver por entre as coisas, precisa nomeá-las, ordená-las, classificá-las, conceituá-las, a fim de que o mundo não lhe seja um completo caos.

o mundo é mudo. o grão de areia não se diz grão de areia, o lago não se diz lago, o mar não se diz mar, o tempo não se sabe tempo: as coisas, no mundo, apenas estão, as coisas apenas são, sem questionar, sem perguntar, sem pressupor, as coisas apenas seguem o seu caminho de coisas.

lagos & rios & mares & pedras não se pensam “fundo” ou “raso”, “grande” ou “pequeno”, “belo” ou “feio”, “rápido” ou “devagar”, “seco” ou “molhado”: somos nós quem pensamos as coisas desse modo, somos nós quem precisamos conceituar, classificar, categorizar, as coisas no mundo mudo, na tentativa de apreendê-las, de ordená-las, de compreendê-las.

o grão de areia ter caído no parapeito da janela é uma aventura nossa, aventura de quem assistiu à queda, aventura de quem imaginou a cena, e não de quem a vivenciou (o grão de areia): para ele é o mesmo que ter caído em qualquer coisa, sem a certeza de já ter caído, ou de ainda estar caindo.

da janela avista-se uma bela paisagem, mas a paisagem não vê a si mesma. existe, neste mundo, sem cor & sem forma, sem som, sem cheiro, sem dor (“cor”, “forma”, “som”, “cheiro”, “dor”: conceitos que criamos para as coisas no mundo, na tentativa de apreendê-las, apreendê-las a fim de vivenciá-las).

o fundo do lago não possui fundo, nem margem as suas margens, e sua água, nem molhada nem seca (“fundo”, “superfície”, “margem”, “meio”, “molhado”, “seco”: conceitos que criamos para as coisas no mundo, na tentativa de apreendê-las, apreendê-las a fim de vivenciá-las).

nem singular nem plural a onda que murmureja surda ao seu próprio murmúrio, ao redor de pedras nem grandes nem pequenas (“singular”, “plural”, “murmúrio”, “silêncio”, “grande”, “pequeno”: conceitos que criamos para as coisas no mundo, na tentativa de apreendê-las, apreendê-las a fim de vivenciá-las).

e tudo isso por debaixo de um céu, por natureza, inceleste, no qual o sol se põe, na verdade, não se pondo, e se oculta, não se ocultando, atrás de uma nuvem insciente, nuvem que oculta o sol sem a consciência de ocultá-lo (“celeste”, “terreno”, “aquático”, “nascente”, “poente”, “ocultar”, “revelar”: conceitos que criamos para as coisas no mundo, na tentativa de apreendê-las, apreendê-las a fim de vivenciá-las).

o vento varre a nuvem, onde o sol se ocultava, sem outra razão que a de ventar.

passa um segundo. dois segundos. três segundos. mas são três segundos somente nossos, porque o tempo não se sabe tempo (“passado”, “presente”, “futuro”, “ontem”, “hoje”, “amanhã”, “dia”, “mês”, “ano”: conceitos sem os quais o bicho homem não conseguiria fazer valer a sua existência no mundo).

“o tempo correu como um mensageiro com notícias urgentes”: a sentença é só um símile nosso, a sentença é só uma metáfora, criada à nossa imagem & semelhança: uma personagem inventada (o tempo mensageiro), a sua pressa imposta (o tempo é sempre o mesmo a passar, não corre nem desacelera), e a notícia inumana (o tempo não é mensageiro de coisa alguma nem tampouco carrega notícia — ele não nos fala, ele não nos escuta, ele não nos enxerga: alheio a tudo & todos).

o tempo passa, parado no tempo, para que passemos, transitórios & perecíveis.

o mundo é mudo. e a experiência humana, um grande delírio detido em palavras.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Poemas. autora: Wislawa Szymborska. tradução: Regina Przybycien. editora: Companhia das Letras.)

 

 

PAISAGEM COM GRÃO DE AREIA

 

Nós o chamamos de grão de areia.
Mas ele mesmo não se chama de grão, nem de areia.
Dispensa um nome
geral, particular
passageiro, permanente,
errado ou apropriado.

De nada lhe serve nosso olhar, nosso toque.
Não se sente olhado nem tocado.
E ter caído no parapeito da janela
é uma aventura nossa, não dele.
Para ele é o mesmo que cair em qualquer coisa
sem a certeza de já ter caído,
ou de ainda estar caindo.

Da janela há uma bela vista para o lago,
mas a vista não vê a si mesma.
Existe neste mundo
sem cor e sem forma,
sem som, sem cheiro, sem dor.

Sem fundo o fundo do lago
e sem margem as suas margens.
Nem molhada nem seca a sua água.
Nem singular nem plural a onda
que murmureja surda ao seu próprio murmúrio
ao redor de pedras nem grandes nem pequenas.

E tudo isso sob um céu por natureza inceleste,
no qual o sol se põe na verdade não se pondo
e se oculta não se ocultando atrás de uma nuvem
…………………………………………………………………..[insciente.
O vento a varre sem outra razão
que a de ventar.

Passa um segundo.
Dois segundos.
Três segundos.
Mas são três segundos somente nossos.

O tempo correu como um mensageiro com notícias
…………………………………………………………………..[urgentes.
Mas isso é só um símile nosso.
Uma personagem inventada, a sua pressa imposta
e a notícia inumana.

BIOGRAFIA
28 de outubro de 2014

Poesia_Nascimento

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biografia: narração, oral, escrita ou visual, das várias fases da vida de uma pessoa ou personagem.

a biografia de um poema:

o poema vai nascendo, vai ganhando vida-versos, num passo que desafia, num caminhar que instiga, que incita: numa hora eu já o levo, eu transporto as palavras, eu carrego os versos, numa hora eu levo o poema porque ao poeta — a mim — cabe a arquitetura de palavras & versos, e outra vez ele — o poema — me guia, tomando-me pelas mãos & escrevendo a sua sina (num dado momento, quando o poema vai ganhando alguma forma, acontece de os próprios ritmo & versos ditarem os caminhos que o poema deve tomar, ainda que tais caminhos, ditados pelos ritmo & versos, contrariem a “opinião”, a “vontade”, do poeta, como se não mais importasse o seu desejo para com os versos).

numa hora eu já o levo, outra vez ele me guia: assim o poema vai nascendo, vai ganhando vida-versos, mas seu corpo lírico ainda é prematuro, ainda é precoce, ainda está em formação, letra lenta, letra que chega vagarosa, pensada, re-pensada, letra lenta que incendeia, letra lenta que queima, com a carícia de um murro (um murro-carícia: um dos grandes efeitos da poesia: efeito feito de contradição, de paradoxo, o que o deixa ainda mais poético — um murro-carícia: a sensação de ser golpeado pelas idéias abrigadas nas palavras que os versos contêm, porém golpeado de forma carinhosa, porque golpeado por palavras, “entes” que incendeiam & machucam & esmurram & ferem apenas metaforicamente).

o poema vai nascendo, vai ganhando vida-versos, sem o ou e que o sustente, e, nascendo sem mão (para ampará-lo no momento da saída total) ou mãe que o sustente (que tenha engravidado & que o esteja parindo), insuportavelmente perverso (a palavra perverso é formada pela palavra “verso”), insuportavelmente malvado, o poema me contradiz: como pode um poema “nascer”, como pode um poema “ser gestado”, sem mão ou mãe que o sustente?

o poeta, sabe-se, não pode ser mãe nem sua mão pode amparar o poema (num dado momento, quando o poema vai ganhando alguma forma, acontece de os próprios ritmo & versos ditarem os caminhos que o poema deve tomar, ainda que tais caminhos, ditados pelos ritmo & versos, contrariem a “opinião”, a “vontade”, do poeta, como se não mais importasse o seu desejo para com os versos).

o poema vai nascendo, vai ganhando vida-versos: jorro de idéias, jato de lampejos, que engole & segura o pedaço duro do grito — diferentemente do recém-nascido, que explode em choro & grito ao nascer, ao nascer o poema engole & segura o pedaço duro do grito, o poema guarda em si a parte difícil, árdua, do grito que gritam os versos (tudo, no poema, quer jorrar, quer gritar, quer explodir, quer expandir em mil sentidos & significações, a serem descobertos na leitura cuidadosa que o poema exige, porém o grito é contido, porque o grito do poema precisa ser revelado, ninguém o escuta, é grito gritado por entre versos & palavras).

o poema vai nascendo, vai ganhando vida-versos: pombo de pluma & granito, pássaro de pena & pedra, feito para alçar vôos nas direções as mais diversas, entretanto alçar vôos em folha de papel — o poema é um pássaro duro, imóvel, intacto, parado, bonito, como se fosse granito.

o poema vai nascendo, vai ganhando vida-versos: jorro de idéias, jato de lampejos, que engole & segura o pedaço duro do grito; pombo de pluma & granito, pássaro de pena & pedra, feito para alçar vôos nas direções as mais diversas, entretanto alçar vôos em folha de papel, duro, imóvel, intacto, parado, bonito, como se fosse granito.

não percamos a viagem: embarquemos nas asas da poesia!

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Todos os ventos. autor: Antonio Carlos Secchin. editora: Nova Fronteira.)

 

 

BIOGRAFIA

A Ricardo Vieira Lima

O poema vai nascendo
num passo que desafia:
numa hora eu já o levo,
outra vez ele me guia.

O poema vai nascendo,
mas seu corpo é prematuro,
letra lenta que incendeia
com a carícia de um murro.

O poema vai nascendo
sem mão ou mãe que o sustente,
e perverso me contradiz
insuportavelmente.

Jorro que engole e segura
o pedaço duro do grito,
o poema vai nascendo,
pombo de pluma e granito.

POR VER RUÍNAS, A CASA QUE SABEREI (PRÉ-PALAVRA) & SUA LEI DO VENTRE LIVRE
7 de fevereiro de 2013

casa em ruínas

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a casa mal construída, assim como a casa bem construída, me parece conclusiva.
 
a casa mal construída, assim como a casa bem construída, me parece concluída, me parece pronta à habitação.
 
 porque sempre vi as casas — tanto a mal construída quanto a bem construída — como “pedras-só”, sempre vi as casas — tanto a mal construída quanto a bem construída — como peças únicas, a casa como única peça, única pedra: a peça-pedra.
 
sempre vi as casas — tanto a mal construída quanto a bem construída — como tijolo (peça-pedra única) pretenso à casa, à espera de nossa voz, isto é, à espera de vozes várias que diriam a elas (às casas):
 
tijolo
sobre
tijolo
argamassa cal cimento concreto & janela
 
sempre vi as casas — tanto a mal construída quanto a bem construída — como “pedras-só”, como peças-pedras únicas, por não conseguir identificar todos os materiais que, no conjunto, constroem o que identificamos como casa: tijolo sobre tijolo, argamassa, cal, cimento, concreto & janela (a ela, à janela, somem-se os materiais: vidro, madeira, mármore, gesso, alumínio, ferro).
 
sempre vi as casas como pedras-só (tijolo pretenso à casa), vindo a ser lembrança um dia (como tudo na vida, as casas também passam…), reminiscências de existido (tal & qual uma casa em ruínas, tal & qual uma casa de escombros, que representa a reminiscência de uma casa inteiriça), no eterno presente de pedra (pedra: matéria mineral sólida, da natureza das rocha, dura, duradoura).
 
por isso me dizem esses destroços — a casa mal construída — a casa que saberei (pois a casa que sei construir é também uma casa mal construída):
 
o tijolo que não galgou telhado; a porta que é um fora sem dentro (pois não há “dentro”, não há interiores, apenas “fora”); a tentativa de sala: sala de não estar.
 
a casa que ficou por fazer: aquela que é construída com palavras, em versos, e que, por isso, por ser construída por palavras, em versos, não é casa (a casa faz-se de tijolo sobre tijolo, argamassa, cal, cimento, concreto, vidro, madeira, mármore, gesso, alumínio, ferro, e não de palavras). 
 
os destroços da casa mal construída me dizem a casa que saberei: a casa da poesia: pois, assim como a casa mal construída, a casa da poesia também é feita de fragmentos, de pedaços, de trechos, de excertos: o que está a meio-dito (pretensa pedra pretensa à casa), a poesia que ficou por fazer, inacabada em seus destroços lingüísticos, a poesia que não foi concluída (o tijolo que não galgou telhado; a porta que é um fora sem dentro; a tentativa de sala: sala de não estar), a poesia incompleta: um “soluço” de casa, uma “casa-pausa”, como o que dizem as reticências…
 
(as reticências, tipo de pausa, deixam, no ar, uma “ruína”, uma frase cujo raciocínio não foi “concluído”, uma frase que pode ser completada. as reticências deixam uma sentença que envida, isto é, que convida de modo desafiador, à sua complementação.)
 
“soluço” de casa, “casa-pausa”: muitas vezes, para a construção de um poema, o poeta rascunha milhares de linhas, milhares de versos que se mantêm pausados, inconclusos, poemas que nasceram para ruínas. e mesmo o poema bem acabado, pronto, mesmo o poema conclusivo, este também possui a sua parcela de “ruínas”: o momento em que a pausa se faz necessária à observação da casa poética, porque o entendimento da arquitetura dos versos nem sempre é (na maioria das vezes não é) fácil.
 
mesmo o poema bem acabado, pronto, mesmo o poema conclusivo, este possui a sua cota de “ruínas”: o momento-reticências, o momento-pausa, a ponderação indispensável ao entendimento da sua arquitetura.
 
além disso, uma casa (em ruínas) nunca é demolida, uma casa (em ruínas) nunca é posta abaixo, porque, quando falha a construção (quando a construção conclui-se inconclusa), só temos os cacos, só temos os fragmentos, só temos os pedaços.
 
uma casa (em ruínas), assim como a poesia (inacabada), é nunca demolida porque só temos os cacos (os fragmentos) quando falha a construção.
 
a construção em ruínas, mesmo demolida, continua “viva” em sua natureza de cacos, continua “viva” em sua natureza de restos, continua “viva” em sua natureza de fragmentos, como cabe ao silêncio carregar seu próprio curso (só o silêncio sabe o silêncio; se a palavra “silêncio” pronuncio, eu suprimo-o).
 
somente à construção em ruínas cabe carregar seu próprio curso, mesmo que seja demolida (ela, que antes existia em fragmentos, em fragmentos continuará a existir), assim como cabe ao silêncio carregar seu próprio curso, assim como cabe à poesia carregar seu próprio curso.
 
à poesia cabe carregar seu próprio curso: antes da palavra escrita & frente ao branco (do papel), minha vontade é branca (experiência de espanto).
 
frente ao branco (do papel), minha vontade é branca: minha vontade é incolor, minha vontade não se mostra; minha vontade é nula, é inexistente como as palavras que procuro a fim de ornar o papel: experiência de espanto: frente ao branco, minha vontade é branca, não é sabido o que se quer a fim de enfeitar o branco (do papel).
 
devo resolver a vontade, devo resolver o desejo, da palavra “vontade”, e torná-la (a vontade da palavra “vontade”) visível, corpórea, e deixá-la à vista de quem quiser vê-la exposta no branco (do papel).
 
porém todavia contudo, indizível é a vontade da palavra “vontade”. a vontade da palavra “vontade” não pode ser dita porque a vontade da palavra cabe apenas à palavra. só mesmo a palavra para saber sua vontade própria.
 
essa incapacidade de decifrar a vontade da palavra “vontade” estanca o poema, trava a feitura dos versos, pois cabe ao poeta a missão (impossível) de buscar a vontade das palavras.
 
por isso, escrever, buscar a vontade das palavras no branco (do papel), é vertigem, por isso escrever é verter vertigem em folha branca, é investir contra o branco (do papel), é dever de escrever à cata do que possa, ao menos, parecer a vontade das palavras.
 
por não haver certezas no caminho que leva aos versos, por não haver um caminho acertado que leve às palavras, o poema mete medo: o que virá? como será? será que prestará? será que valerá a pena? por isso, o poema é deixar tremer, é deixar espantado, é deixar assustado, é deixar-se em total estado de alerta com as palavras, para quando a palavra for dita, dizer tudo que o branco (do papel) diria:
 
que é temor & tremor (não existem certezas no caminho que leva aos versos, não existe um caminho acertado que leve às palavras: o poema mete medo), já que mesmo quando publico a palavra no poema (ou quando publico a palavra em texto como este aqui), apenas multiplico, apenas aumento, o abismo: pois o sulco emotivo de cada palavra é cativo do autor, que, mesmo escrito (o sulco emotivo de cada palavra), no fundo, o autor carrega em segredo.
 
muitas vezes, a interpretação de um poema — por parte de quem o lê — não chega exatamente às razões profundas — ao sulco emotivo — que levaram o poeta a escrever o dito. há um tanto imenso do leitor impresso na leitura que ele faz dos versos.
 
como o povo é falador (as pessoas gostam muito de falar suas impressões acerca de um livro, um filme, um espetáculo) & aquele (o autor) não diz (o sulco emotivo de cada palavra, as razões profundas que o levaram a escrever suas linhas) por medo (ou por recato, ou por respeito às tantas possíveis interpretações): fica o lido pelo dito.
 
fica o lido pelo dito: como o povo é falador & o autor não expõe as razões profundas que o levaram a escrever suas linhas, o que vale é a interpretação que cada um carrega daquilo que foi lido, o que vale é o que cada leitor diz a respeito do que foi lido.
 
mas lido que é autoria (o escritor escreve & torna-se autor de algo porque alguém leu o que foi escrito por ele, um autor torna-se escritor de algo porque existe um público leitor que legitima sua autoria, porque sem leitor — sem quem o leia — não há razão para a existência do autor), uma vez publicada, a palavra ganha a alforria, a palavra ganha a emancipação, do leitor (através das tantas possíveis — porque cabíveis — interpretações).
 
(fica o lido pelo dito.)
 
beijo todos!
paulo sabino.       
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(do livro: Um caderno de capa verde. autor: Flávio Morgado. editora: 7Letras.)
 
 
 
POR VER RUÍNAS
 
 
a casa mal construída
me parece conclusiva.
 
porque sempre vi as casas
como pedras-só
(tijolo pretenso à casa)
à espera de nossa voz
que lhes diriam:
tijolo
sobre
tijolo
argamassa cal cimento concreto
                                                                  e janela…
 
vindo a ser lembrança
reminiscências de existido
no eterno presente de pedra
 
por isso me dizem esses destroços
a casa que saberei
 
O tijolo que não galgou telhado;
a porta que é um fora sem dentro;
a tentativa de sala:
 
sala de não estar
 
essa casa que ficou por fazer
 
o que está a meio-dito (pretensa pedra)
à espera de um ouvido a lhe envidar
 
(soluço de casa)
 
casa-pausa
como o que dizem as reticências…
pois uma casa é nunca demolida
 
porque só temos os cacos
quando falha a construção
 
como cabe ao silêncio
carregar seu próprio curso
 
 
 
PRÉ-PALAVRA
 
 
minha vontade 
é branca antes da palavra escrita
                                  e frente ao branco
(experiência de espanto)
 
devo resolver
a vontade da palavra vontade
e torná-la visível
                      corpórea
 
porém indizível é a vontade —
absolutamente outra da palavra —
que 
estanca
o poema
 
é verti
gem e
dever de escrever
 
(e o poema é deixar tremer)
 
é deixá-lo
                      espantado
para quando a palavra for dita
dizer tudo que o branco
 
diria:
que é temor e
                             tremor
 
já que mesmo quando
no poema a palavra publico
apenas o
                    abismo
                    multiplico
 
 
 
LEI DO VENTRE LIVRE
 
 
o sulco emotivo de cada palavra
é cativo do autor
que mesmo escrito carrega em segredo.
como o povo é falador
e aquele não diz por medo:
 
fica o lido pelo dito.
 
mas lido que é autoria,
uma vez publicada, tem a palavra
a alforria do leitor

POEMA DE NATAL
21 de dezembro de 2012

Sino

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fim de ano. andando à rua, de repente, ouço o sino tocar.
 
capacitado ao diálogo, pergunto ao sino, ao claro sino, para quem toca. ele me responde que toca para deus menino que, de longe, vem.
 
como nunca topei com deus menino nas suas andanças pela terra, peço ao sino, que anuncia a sua vinda, para trazê-lo — trazer o deus menino — ao meu amor.
 
o sino interpreta-me ousado em meu pedido; pergunta-me o que tenho a oferecer a deus menino, eu, que sou um velho pecador.
 
ao sino respondo: ao deus menino, deus com quem nunca esbarrei quando nas suas andanças pela terra, ao deus menino ofereço:
 
minha fé cansada (de ser fé — afinal, nunca, na vida, deus menino a mim se apresentou); ofereço ao deus menino o que tenho para comer, para beber, aquilo que me alimenta, aquilo que mata a minha sede: meu pão, meu vinho: o poema, o amor, o sentimento fraterno; ofereço ao deus menino meu silêncio limpo, silêncio isento de qualquer outra coisa que não seja silêncio, silêncio limpo de pensamentos, silêncio vazio de elucubrações; ofereço ao deus menino minha solidão, os momentos do paulo sabino a sós com o paulo sabino, momentos de silêncio limpo, onde o que conta (o que vale) é o que não se conta (o que não se diz; o que não se enumera), momentos da mais pura paz.
 
peço ao claro sino para trazê-lo — trazer o deus menino — ao meu amor.
 
(ao meu poema de natal.)
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Melhores poemas. autor: Carlos Pena Filho. seleção: Edilberto Coutinho. editora: Global.)
 
 
 
POEMA DE NATAL
 
 
— Sino, claro sino,
      tocas para quem?
— Para o Deus menino
      que de longe vem.
 
— Pois se o encontrares
      traze-o ao meu amor.
— E que lhe ofereces
      velho pecador?
 
— Minha fé cansada,
      meu vinho, meu pão,
      meu silêncio limpo,
      minha solidão.

UM POUCO DE SILÊNCIO
4 de maio de 2012

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nesta trepidante cultura nossa, da agitação e do barulho, gostar de sossego é uma excentricidade.

sob a pressão do ter de parecer, ter de participar, ter de adquirir, ter de qualquer coisa, assumimos uma infinidade de obrigações.

é indispensável, em tempos modernos, circular, estar enturmado. quem não corre com a manada, quem não se apressa com a multidão inquieta, praticamente nem existe. se não se cuidar, botam numa jaula: um animal estranho.

ficar sossegado é perigoso. porque sossegar significa recolher-se em algum lugar (ou em casa, ou dentro de si mesmo), ação que propicia um contato mais fundo com quem — ou o que — somos, ato que ameaça quem leva um susto cada vez que examina sua alma.

ficar sossegado: recolher-se (ou em casa, ou dentro de si): ouvir a voz do silêncio.

o silêncio nos assusta por retumbar, por ressoar, no vazio (no oco, no desabitado, no desértico, no árido) dentro de nós. quando em silêncio, quando nada se move nem faz barulho, notamos as frestas, as fendas, por onde nos espiam coisas incômodas & mal resolvidas, ou enxergamos outro ângulo de nós mesmos.

em silêncio, um contato mais fundo com quem — ou o que — somos: “quem é esse que afinal sou eu? quais seus desejos & medos, seus projetos & sonhos?”

no susto que essa idéia provoca, a de tocar nas coisas incômodas & mal resolvidas, queremos ruído, almejamos ruídos, muitos ruídos, certa poluição sonora, a fim de que os ruídos nos distraiam & nos distanciem das coisas incômodas & mal resolvidas, coisas que, muitas vezes, não queremos perceber porque a percepção destas incita mudanças, e mudar coisas incômodas & mal resolvidas não é fácil, não…

silêncio faz pensar, remexe águas paradas, trazendo à tona sabe deus que desconserto, que desarranjo, que desordem, que estrago nosso…

com medo de ver quem — ou o que — somos, adia-se o defrontamento com nossa alma sem máscaras. com medo de ver, adia-se o defrontamento com nossa alma sem afetações, sem os maneirismos que não correspondem, sem as armaduras que nos tornam inacessíveis, que nos deixam fora do alcance de nós mesmos.

porém contudo todavia, se a gente aprende a gostar um pouco de sossego, descobre — em si & no outro — regiões antes não imaginadas, questões fascinantes & não necessariamente ruins.

no processo do autoconhecimento (processo que requer quietude, sossego, silêncio), questões são reafirmadas; há o prazer do reencontro com questões que alegram & animam o ser de ser & estar.

a quietude pode ser como a chuva que, atentos ao ar, observamos chegar: intensa & lenta, tornando tudo singularmente novo.

nela, na quietude, a gente se refaz para voltar mais inteiro ao convívio, às tarefas, aos amores.

(aquietar-se é preciso, viver não é preciso…)

então, por favor, me dêem isso: um pouco de silêncio bom, para que eu escute o vento nas folhas, a chuva nas lajes, o mar que quebra na areia, e tudo o que fala muito além das palavras de todos os textos & muito além da música dos sentimentos: o grito do silêncio. sua voz inaudita, voz de vazio, voz oca, voz que possibilita o diálogo entre tantas vozes outras, vozes que surgem do (aparente) vazio dentro de nós, e que retumbam, e que ressoam, vozes que se reafirmam satisfeitas, vozes que pedem mudanças, vozes que precisam ser encaradas & resolvidas se necessário.

ouvir a voz do silêncio: a pedra, toda exterioridade, um silêncio absoluto defronte para o mar: ouvir o que sua voz tem a nos ventar.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Pensar é transgredir. autora: Lya Luft. editora: Record.)

 

UM POUCO DE SILÊNCIO

 

Nesta trepidante cultura nossa, da agitação e do barulho, gostar de sossego é uma excentricidade. Sob a pressão do ter de parecer, ter de participar, ter de adquirir, ter de qualquer coisa, assumimos uma infinidade de obrigações. Muitas desnecessárias, outras impossíveis, algumas que não combinam conosco nem nos interessam.

Não há perdão nem anistia para os que ficam de fora da ciranda: os que não se submetem mas questionam, os que pagam o preço de sua relativa autonomia, os que não se deixam escravizar, pelo menos sem alguma resistência.

O normal é ser atualizado, produtivo e bem-informado. É indispensável circular, estar enturmado. Quem não corre com a manada praticamente nem existe, se não se cuidar botam numa jaula: um animal estranho.

Acuados pelo relógio, pelos compromissos, pela opinião alheia, disparamos sem rumo — ou em trilhas determinadas — feito hâmsteres que se alimentam de sua própria agitação.

Ficar sossegado é perigoso: pode parecer doença. Recolher-se em casa ou dentro de si mesmo, ameaça quem leva um susto cada vez nos que examina sua alma.

Estar sozinho é considerado humilhante, sinal de que não se arrumou ninguém — como se amizade ou amor se “arrumasse” em loja. Com relação a homem pode até ser libertário: enfim só, ninguém pendurado nele controlando, cobrando, chateando. Enfim, livre!

Mulher, não. Se está só, em nossa mente preconceituosa é sempre porque está abandonada: ninguém a quer.

Além do desgosto pela solidão, temos horror à quietude. Logo pensamos em depressão: quem sabe terapia e antidepressivo? Criança que não brinca ou salta nem participa de atividades frenéticas está com algum problema.

O silêncio nos assusta por retumbar no vazio dentro de nós. Quando nada se move nem faz barulho, notamos as frestas pelas quais nos espiam coisas incômodas e mal resolvidas, ou se enxerga outro ângulo de nós mesmos. Nos damos conta de que não somos apenas figurinhas atarantadas correndo entre casa, trabalho e bar, praia ou campo.

Existe em nós, geralmente nem percebido e nada valorizado, algo além desse que paga contas, transa, ganha dinheiro, e come, envelhece, e um dia (mas isso é só para os outros!) vai morrer. Quem é esse que afinal sou eu? Quais seus desejos e medos, seus projetos e sonhos?

No susto que essa idéia provoca, queremos ruído, ruídos. Chegamos em casa e ligamos a televisão antes de largar a bolsa ou pasta. Não é para assistir a um programa: é pela distração.

Silêncio faz pensar, remexe águas paradas, trazendo à tona sabe Deus que desconserto nosso. Com medo de ver quem — ou o que — somos, adia-se o defrontamento com nossa alma sem máscaras.

Mas, se a gente aprende a gostar um pouco de sossego, descobre — em si e no outro — regiões nem imaginadas, questões fascinantes e não necessariamente ruins.

Nunca esqueci a experiência de quando alguém botou a mão no meu ombro de criança e disse:

— Fica quietinha, um momento só, escuta a chuva chegando.

E ela chegou: intensa e lenta, tornando tudo singularmente novo. A quietude pode ser como essa chuva: nela a gente se refaz para voltar mais inteiro ao convívio, às tantas frases, às tarefas, aos amores.

Então, por favor, me dêem isso: um pouco de silêncio bom para que eu escute o vento nas folhas, a chuva nas lajes, e tudo o que fala muito além das palavras de todos os textos e da música de todos os sentimentos.