JOÃO CABRAL DE MELO NETO: RAZÃO & EMOÇÃO UNAS, INDISSOCIÁVEIS
16 de agosto de 2016

João Cabral de Melo Neto

(O poeta)

Pedra do Frade

(A pedra)

Estrada Real_Diamantina (MG)

(O sertão)
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João Cabral de Melo Neto é um poeta que, em geral, todo poeta gostaria de ser (pelo menos um pouquinho). (Falo por muitos, eu sei.)

Sua poética é enxuta, econômica, e seu português, elegante, com mira certeira ao construir suas imagens pela economia de palavras. Diz-se que, por isso, João Cabral é um poeta também enxuto, econômico, nas emoções; que João Cabral é um poeta apenas “cerebral”.

Eu, na minha humilde percepção, porém convicto, sempre discordei disso. Porque, de fato, João Cabral é um poeta cerebral; “cerebral” no sentido de ter cada palavra milimetricamente pensada & posta no poema. Entretanto, atrelado ao seu trabalho cerebral, o de pensar — pelo recurso da economia — cada palavra milimetricamente posta no poema, vai no verso o que o emociona profundamente no mundo — vide o seu acervo temário.

João Cabral é um homem/poeta de profundezas, que olhou o seu povo de morte & vida severina, lamentou pelo rio de sua terra & infância, o seu Capiberibe, apaixonou-se por Sevilha & suas bailadoras, e admirou a poesia de Joaquim Cardozo, Augusto de Campos, Sophia de Mello Breyner Andresen, W. H. Auden, Marianne Moore, Elizabeth Bishop, Marly de Oliveira, Alexandre O’Neill, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, entre outros.

Portanto, ao meu ver, o que é cerebral, na obra cabralina, é a formulação técnica da poesia; e o que é posto em verso com “precisão cirúrgica” (com a técnica) é banhado por seu olhar emocionado diante das coisas.

É assim que vejo, sinto, percebo, a obra do João Cabral. É este o João Cabral que me alucina, que me emociona.

Principalmente a segunda parte do poema abaixo, que é das coisas mais lindas do mundo, me serve de exemplo para ilustrar o escrito acima.

Um dos modos de educar-se pela pedra: (nascendo, vivendo) no Sertão: o Sertão & sua paisagem dura, seca, árida, agreste, econômica, muda, paisagem sertaneja que, por dura, seca, árida, agreste, econômica, muda, molda os sertanejos à pedra. No Sertão, a educação pela pedra é de dentro pra fora, isto é, do SERtanejo para o seu hábitat, a educação pela pedra é pré-didática, isto é, a educação pela pedra não é ensinada pela pedra: lá no sertão, a pedra, uma pedra de nascença, entranha na alma.

Como não se emocionar com essa percepção do poeta acerca do Sertão & suas gentes? Como negar o olhar emocionado, aliado ao rigor estilístico, de quem enxerga desta maneira?

João Cabral de Melo Neto é muito cerebral & também emoção sublimada.

E tenho dito.

Beijo todos!
Paulo Sabino.
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(do livro: A educação pela pedra e depois. autor: João Cabral de Melo Neto. editora: Nova Fronteira.)

 

 

A EDUCAÇÃO PELA PEDRA

 

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

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Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.

MUSA
6 de fevereiro de 2014

Casa branca & Mar azul

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não há nada, no mundo, que possa fazer eu deixar de cantar (o canto da poesia).

não há nada no mundo — nem nunca haverá.

musa, deusa responsável por ventar as palavras ao pé do meu ouvido, ensina-me o canto venerável (que se deve respeitar, digno de veneração) & antigo.

o canto venerável & antigo: o canto da poesia, no mundo desde priscas eras, no mundo desde tempos remotos, o canto para todos porque por todos entendido, o canto claro feito luz do dia.

musa, ensina-me o canto, este, o justo irmão das coisas, o canto que cante a vida (a planta, a pedra, a parede da casa primitiva, o murmúrio do mar que a cercava, a janela quadrada, o quarto branco, a manhã polida & seu brilho), canto incendiador da noite (momento intenso, em que a deusa musa venta, ao pé do meu ouvido, os seus desejos de linguagem), e canto secreto — impenetrável, que não se revela — na tarde (momento em que o canto não se revela porque em estado de maturação, em estado de sentidos, percepções, momento em que o canto ainda abstrato, a pré-linguagem).

musa, ensina-me o canto em que eu mesmo regresso, sem demora & sem pressa, no tempo certo/ideal, tornado planta ou pedra, ou tornado parede da casa primitiva, ou tornado o murmúrio do mar que cercava a casa primitiva: musa, ensina-me o canto profundo, o canto que canta muitas vozes (a voz da planta, da pedra, da parede da casa primitiva, do murmúrio do mar que a cercava, da janela quadrada, do quarto branco, da manhã polida & seu brilho), tendo, como instrumento para cantar, a minha (pouca) voz.

musa, ensina-me o canto onde o mar, fascínio maior da minha existência, respira, coberto de brilhos (brilhos que são o reflexo, na superfície marinha, tanto da luz solar quanto da luz lunar).

musa, ensina-me o canto da janela quadrada & do quarto branco — que eu possa dizer, com teu sopro inspirador, como a tarde, ali, no quarto branco, tocava na mesa & na porta, no espelho & no corpo, e como os rodeava.

que eu possa, musa, dizer o canto das coisas, pois o tempo me corta, o tempo me divide, o tempo me atravessa, e me separa, vivo, do chão & da parede da casa primitiva (o caráter da identidade se dá pelo caráter da alteridade: eu sei quem sou porque sei que não sou o chão nem a parede da casa primitiva; deles me destaco, deles me separo).

musa, ensina-me o canto venerável & antigo, o canto da poesia, para prender o brilho desta manhã polida, manhã luzidia, límpida em sua luminosidade, manhã que pousava docemente os seus dedos na duna & que caiava as paredes da casa limpa & branca.

musa, ensina-me o canto que me corta a garganta.

musa, ensina-me o canto que em tudo me encanta.

para que eu me torne, vidafora, musa, um instrumento do teu prazer & da tua glória.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Poemas escolhidos. seleção: Vilma Arêas. autora: Sophia de Mello Breyner Andresen. editora: Companhia das Letras.)

 

 

MUSA

 

Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
O canto para todos
Por todos entendido

Musa ensina-me o canto
O justo irmão das coisas
Incendiador da noite
E na tarde secreto

Musa ensina-me o canto
Em que eu mesma regresso
Sem demora e sem pressa
Tornada planta ou pedra

Ou tornada parede
Da casa primitiva
Ou tornada o murmúrio
Do mar que a cercava

(Eu me lembro do chão
De madeira lavada
E do seu perfume
Que atravessava)

Musa ensina-me o canto
Onde o mar respira
Coberto de brilhos
Musa ensina-me o canto
Da janela quadrada
E do quarto branco

Que eu possa dizer como
A tarde ali tocava
Na mesa e na porta
No espelho e no corpo
E como os rodeava

Pois o tempo me corta
O tempo me divide
O tempo me atravessa
E me separa viva
Do chão e da parede
Da casa primitiva

Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
Para prender o brilho
Dessa manhã polida
Que poisava na duna
Docemente os seus dedos
E caiava as paredes
Da casa limpa e branca

Musa ensina-me o canto
Que me corta a garganta

A AÇÃO DOS BLACK BLOCS NESTA HORA
10 de setembro de 2013

Caetano Veloso_Black Bloc

Paulo Sabino_Black Bloc

(Nas fotos, o poeta-compositor Caetano Veloso & o poeta Paulo Sabino.)
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Ah, é? Então quer dizer que você SOFREU na ditadura militar, APANHOU, VIU os maiores absurdos?

Ah, é? Então quer dizer que, à época da ditadura militar, você SENTIU dor, REVOLTOU-se, CLAMOU por justiça?

Pois é, mas tudo isso no passado… Todos os verbos (que denotam AÇÃO), aqui, estão no pretérito.

Vamos parar de legitimar o que pensamos HOJE (que é o que REALMENTE importa) com ações do passado.

Ferreira Gullar também LUTOU & SOFREU na ditadura militar & hoje vai aos jornais para dizer que os empresários são, na área econômica, uma espécie de artistas no modo de conduzir o modelo econômico vigente…

Aí me dá uma tristeza imensa… Artistas?! Empresários?! Só se forem do terror, do horror, das recessões econômicas, das mazelas sociais!

O jornalista Marcelo Rubens Paiva escreveu um texto para o jornal “Estadão” no qual legitima a sua postura anti-black blocs apoiado em ações suas que ficaram no passado. Acho isso o fim.

Mobilização social, por conta de violências praticadas pelo Estado, possui uma dose de violência. Isso tem a ver com aquele conhecimento mais antigo que a vovó: gentileza gera gentileza; e violência, obviamente, violência. Não se pode esperar protestos com flores & bandeiras brancas, por parte de toda a massa que vai às ruas, quando muitos são tratados com extrema violência nos seus cotidianos, quando, TODOS, vivemos num Estado ESCROTO & FILHO DA PUTA como o Brasil em diversos aspectos.

O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), como bem escreveu um leitor do texto do Marcelo Rubens Paiva, “com seu pleito por terra (até certo ponto muito justo), invade propriedades privadas levando nas mãos foices e enxadas e, algumas vezes, depredam a propriedade e o plantio ali feito. Isso é legítimo.”

Fico pensando: possivelmente os que bradam, veementes, contra as ações dos black blocs, se moradores do campo, ficariam indignadíssimos com a postura do campesinato ligado aos movimentos sociais em prol de uma distribuição de terras mais igualitária. Portanto, a “depredação” & o “quebra-quebra” incomodam porque acontecem do ladinho das suas confortáveis residências urbanas. É muito mais bacana apoiar a causa do MST ou a dos índios, quando também reagem de forma violenta aos abusos cometidos por grandes latifundiários, porque tais formas de protestos acontecem lááááááá no “fim do mundo”, sem o perigo & a ameaça de que o sangue jorrado respingue nos belos apartamentos da zona sul do Rio de Janeiro.

Escreve, ainda, o leitor que bem responde ao texto do Marcelo Rubens Paiva: “colocar uma máscara não é sinônimo de vandalismo. Nem todos os mascarados são vândalos. Muitos usam máscaras pra se proteger da pimenta, do gás e do FICHAMENTO CLANDESTINO feito por policiais e militares sem identificação e com seus rostos cobertos.”

Sabemos das ações pra lá de ARBITRÁRIAS, seja no campo, seja na cidade, utilizadas pelas milícias do Estado, demasiadamente VIOLENTAS.

Eu quero a paz. Eu prefiro a paz. Sou um homem de delicadezas, portanto, um homem pacífico. Mas acho a indignação extrema extremamente proporcional ao estado de violência gerado pelo Estado.

A cada ação, a sua devida re-ação.

A população é maltratada pelo Estado (ação) & isso, naturalmente, evidentemente, pode gerar, em alguns, uma re-ação na mesma medida.

Beijo todos!
Paulo Sabino.
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(do livro: Poemas escolhidos. autora: Sophia de Mello Breyner Andresen. seleção: Vilma Arêas. editora: Companhia das Letras.)

 

 

NESTA HORA

 

Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
Mesmo aquela que é importante neste dia em que se invoca o povo
Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade

Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida

O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe

A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados

Não basta gritar povo é preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar

Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão

Para construir o canto do terrestre
— Sob o ausente olhar silente de atenção —

Para construir a festa do terrestre
Na nudez de alegria que nos veste

O NAVEGANTE & SUA BIOGRAFIA COM PALAVRAS DE PINTAR
15 de janeiro de 2013

Paulo Sabino e Mar

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 inundado de mar, eu não escrevo, eu transcrevo seus poemas.
 
transcrevo os poemas do mar, pois só o mar escreve o mar, só o mar escreve seu manto azul líquido, suas ondulações de variações seqüenciadas, seu perfume de maresia, sua música incessante, seu gosto de sal.
 
só o mar escreve o mar. eu transcrevo seus poemas, pois somente em sua paleta (chapa de madeira sobre a qual os pintores colocam & misturam a tinta), somente na gama de cores disposta na sua paleta, encontro as palavras de pintar:
 
azul a luz o céu a gaivota o barco o peixe a sereia a areia.
 
poeta do olhar poeta (pois, antes de mim, antes do paulo sabino pensante, “poeta” é o olhar que me abriga. antes de mim, “poeta” é o olhar, que enxerga o mundo na estamparia da poesia. é o olhar que olha poeticamente. na verdade, o paulo sabino pensante-poeta é somente um instrumento, um canal, um veículo, para o olhar, poeta essencial & primordial), eu próprio sou da paleta do mar, poeta do olhar poeta, eu próprio faço parte da gama de cores da paleta marinha.
 
poeta do olhar poeta, eu próprio sou da paleta do mar (não só por conta da minha alucinação pelo mar & seus mistérios & imensidão, mas também em última instância: afinal, estudos científicos apontam que os primeiros indícios de vida no planeta vieram da água, vieram da imensidão do mar).
 
pertencendo à gama de cores da paleta do mar, sou também, deste mar, navegante.
 
e, navegante que sou, no ar que me falta, navegador que sou, ainda que, à navegação, me falte vento para navegar, enfuno a vela a boreste, encho a vela da minha embarcação com o ar do meu fôlego, e vou, e sigo, a boreste (sigo do lado direito da embarcação errante), enfuno a vela a boreste, e ergo esquálido estandarte, e ergo minha bandeira de causa nenhuma, estandarte simples, bandeira besta, pessoa marcada que sou aos becos deste mar, pessoa marcada que sou para conhecer os becos deste mar (as ruas estreitas & curtas, em geral sem saída, que povoam o reino marinho): os becos deste mar: onde aves devoram peixes (lâmina de prata fisgada & presa no bico da gaivota), vidas de prata que nadam extáticas no tempo que resta.
 
no fundo, o mar nos serve de metáfora (pessoa marcada que sou para conhecer os becos deste mar): somos como os peixes: nadamos neste mar de caminhos & possibilidades que é a vida, até que, extáticos, num repente, inesperadamente, um beco (uma ruela estreira & sem saída, uma situação difícil, de grande aperto) neste mar em que nadamos: estamos “suspensos no ar”, “fisgados” para fora da água-vida. enquanto não somos “fisgados” para fora da água-vida, seguimos nadando, extáticos, isto é, encantados, maravilhados, em êxtase, no tempo que nos resta.
 
assim a minha biografia: poeta do olhar poeta, eu próprio, paulo sabino, sou da paleta do mar. poeta do olhar poeta, eu próprio, paulo sabino, navegante dos mares de sal & da vida, também sou peixe imerso nas águas deste nosso cotidiano, nadando extático — em êxtase — no tempo que me resta, sujeito a ser “fisgado” & “suspenso” — peixe fora d’água, peixe fora do seu habitat — se capturado pelo anzol de alguma fatalidade. 
 
assim a minha biografia: poeta do olhar poeta, navegante dos mares de sal & da vida, peixe imerso nas águas deste cotidiano, paulo sabino teve amigos, muitos, amigos que morriam, amigos que partiam, amigos que chegavam, outros quebravam o seu rosto contra o tempo, outros geravam gerânios no jardim; paulo sabino odiou o que era fácil, odiou o que se obtém sem dificuldade, pois o paulo sabino gostava das funduras (o mar é feito de abismos abissais); paulo sabino procurou-se na luz no vento no mar.
 
(o navegante & sua biografia com palavras de pintar.)
 
beijo todos!    
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(do livro: Céu em Cima / Mar Em baixo. autor: Alex Varella. editora: Topbooks.)
 
 
 
PALAVRAS DE PINTAR
 
 
Inundado de mar,
eu não escrevo, eu transcrevo seus poemas,
pois somente em sua paleta encontro as palavras de pintar.
Poeta do olhar poeta,
eu próprio sou
da paleta do mar.
 
 
 
 
(do livro: A chave do mar. autor: Fernando Moreira Salles. editora: Companhia das Letras.)
 
 
 
NAVEGANTE
 
 
No ar que me falta
enfuno a vela
a boreste
ergo
esquálido estandarte
barão assinalado
aos becos deste mar
onde aves
devoram
peixes derradeiros
vidas de prata
que nadam
extáticas
no tempo
que resta
 
 
 
 
(do livro: Poemas escolhidos. autora: Sophia de Mello Breyner Andresen. seleção: Vilma Arêas. editora: Companhia das Letras.)
 
 
 
BIOGRAFIA
 
 
Tive amigos que morriam, amigos que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-me na luz, no mar, no vento.

HOMENAGEM AO JOÃO
30 de agosto de 2010

senhores,
 
abaixo, linhas escritas em homenagem a um dos maiores poetas da língua portuguesa de todos os tempos:
 
joão cabral de melo neto.
 
este poeta gostava de afirmar que seu trabalho com a poesia era estritamente cerebral. o encaixe das palavras, a musicalidade dos versos, as imagens criadas, tudo em joão cabral, segundo o próprio, era cem por cento “transpiração”. o bardo não cria em “inspiração”; cria na poesia como a prática da escrita. sentar e escrever escrever & escrever. era muito disciplinado.
 
(não era à toa a ENORME admiração que cabral alimentava pelo poeta francês charles baudelaire.)
 
eu, até hoje, não consigo essa prática, a da disciplina. sou mais próximo de clarice lispector (não no talento, senhores, mas na forma de criação), que dizia que o seu método de escrever era caótico. 
 
caótico porque não havia método, não havia disciplina. clarice chegava a declarar que não se considerava uma profissional da escrita, mas uma eterna amadora & aprendiz. adorava afirmar que não sabia escrever. eu me sinto assim, exatamente como ela.
 
portanto, o meu processo criativo atua de um modo muy diferente do modo que atuava em joão cabral. realidades díspares, que se “estranham” (estranham-se pela divergência). e isso não me impede de gostar dos escritores e poetas que trabalham de outra forma.
 
há quem afirme não gostar de joão cabral exatamente por esta característica que ele fazia questão de salientar: a do “uso cerebral” no centro de tudo, sem apelos a qualquer tipo de emoção ou comoção. tudo, no verso, é milimetricamente estudado. o poeta não erra a direção de sua exata insistência. traz à tona o que era latente , o que era oculto, na voz imanente do poema.    
 
eu gosto de joão cabral, e tenho-o como um dos maiores, exatamente por essa característica. não possuo um senso narcíseo para com a poesia:
 
é que Narciso acha feio o que não é espelho (“sampa”, caetano veloso).  
 
não enxergo beleza apenas naquilo que me é afim. 
 
gosto das diferenças, aprecio os desencontros. diferenças não nasceram para exclusão, nasceram para complementaridade.
 
adoro ler poetas com modos de trabalhar o poema diferentes do meu. acho que isso só enriquece a poesia. todos nós, poetas & leitores, ganhamos com as diferenças. 
 
gosto de pensar na peculiar disciplina do poeta e de pensar na precisão cirúrgica do seu traço ao desenhar imagens com as palavras. poeta que não se enebria em fluência, poeta seco, o seu verso diz exclusivamente o que pretende dizer. morro em admirações & respeito, e, com as suas habilidades, tento aprender.     
 
desapegar-se dos pré-conceitos é um saudável exercício, inclusive para ser feito com a poesia.
 
“paulo sabino, você prefere os escritores mais ‘emocionais’ ou os mais ‘cerebrais’?”
 
a minha resposta: eu prefiro, sempre, um bom escritor. e o bom escritor pode ser mais emocional ou mais cerebral, não importa. 
 
NADA impede que um poeta “cerebral” produza uma obra extremamente emocionante & emocionada. a princípio, parece um contrasenso, mas não existe contrasenso algum na minha afirmação.
 
o importante é o resultado final. e, nesse sentido, juntamente com fernando pessoa e carlos drummond, joão cabral nos deixou uma obra imbatível.
 
(poesia boa, poesia de grandes capacidades poéticas, sempre alucina.)
 
lê-lo é valer-se de grandes lições da literatura. 
 
lembrem-se disto, pessoas: belezas não nasceram para serem excludentes. belezas nasceram para serem complementares.
 
aqui, a minha singela homenagem ao mestre, mestre a quem sempre recorro, mestre que sempre procuro.
 
beijo bom em todos vocês,
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Poemas escolhidos. autora: Sophia de Mello Breyner Andresen. seleção: Vilma Arêas. editora: Companhia das Letras.)
 
 
DEDICATÓRIA DA SEGUNDA EDIÇÃO
DO CRISTO CIGANO A
JOÃO CABRAL DE MELO NETO
 
I
 
João Cabral de Melo Neto
Essa história me contou
Venho agora recontá-la
Tentando representar
Não apenas o contado
E sua grande estranheza
Mas tentando ver melhor
A peculiar disciplina
De rente e justa agudeza
Que a arte deste poeta
Verdadeira mestra ensina
 
II
 
Pois é poeta que traz
À tona o que era latente
Poeta que desoculta
A voz do poema imanente
 
Não erra a direcção
De sua exacta insistência
Não diz senão o que quer
Não se enebria em fluência
Mas sua arte não é só
Olhar certo e oficina
E nele como em Cesário
Algo às vezes se alucina
 
Pois há nessa tão exacta
Fidelidade à imanência
Secretas luas ferozes
Quebrando sóis de evidência
 
VI
 
A noite abre os seus ângulos de lua
E em todas as paredes te procuro
 
A noite ergue as suas esquinas azuis
E em todas as esquinas te procura
 
A noite abre as suas praças solitárias
E em todas as solidões eu te procuro
 
Ao longo do rio a noite acende as suas luzes
Roxas verdes e azuis
Eu te procuro

BIOGRAFIA
3 de abril de 2010

prezados,
 
aqui, um tanto da grafia, da escrita da minha existência:
 
eu me perdi na sordidez do mundo. e me salvei na limpidez da terra.
 
eu me busquei no vento e me encontrei no mar.
 
por isso, não me peçam cartão de identidade, pois nenhum outro, senão o mundo, tenho. não trago deus em mim, mas no mundo em que habito, sabendo que o real o revelará.
 
não tenho explicações. olho e confronto, e, por método, meu pensamento é nu.
 
a terra, o sol, o vento, o mar, são minha biografia, são meu rosto.
 
o meu interior é uma atenção voltada para fora. de tudo quanto vejo, me acrescento.
 
e, ao poema, eternamente, regressarei como à pátria, como à casa, como à antiga infância, para buscar, obstinado, a substância de tudo e gritar de paixão sob mil luzes acesas.
 
que assim seja.
 
um beijo em todos,
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Poemas Escolhidos. autora: Sophia de Mello Breyner Andresen. organização: Vilma Arêas. editora: Companhia das Letras.)
 
 
EU ME PERDI
 
Eu me perdi na sordidez de um mundo
Onde era preciso ser
Polícia agiota fariseu
Ou cocote
 
Eu me perdi na sordidez do mundo
Eu me salvei na limpidez da terra
 
Eu me busquei no vento e me encontrei no mar
E nunca
Um navio da costa se afastou
Sem me levar
 
 
POEMA
 
A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita
 
Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará
 
Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento
 
A terra o sol o vento o mar
São minha biografia e são meu rosto
 
Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento
 
E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada
 
 
REGRESSAREI
 
Eu regressarei ao poema como à pátria à casa
Como à antiga infância que perdi por descuido
Para buscar obstinada a substância de tudo
E gritar de paixão sob mil luzes acesas

ÀS MULHERES
8 de março de 2010

Mulheres_PB
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o dia de hoje, 8 de março, é reservado internacionalmente a uma homenagem às mulheres. por essa razão, segue este poema-canção, lindíssimo, que se encaixa perfeitamente ao laurel proposto: versos que falam de mulheres, mais especificamente das mulheres do meu brasil varonil, porém possíveis de serem estendidos a todas as demais mulheres, debuxados por uma grande cantora & compositora & interpretados por outra grande companheira de profissão. eu, desde sempre, desde a minha mãe, desde as minhas tias, sou louco por mulheres, um grande fã. as que conheço & estão ao meu lado são habituadas a delicadezas. inteligentes, protetoras, perspicazes.

gosto muito de gente. gosto de escutar gente, de saber o que pensa, como anda. não seria diferente com as mulheres.

a elas, a capacidade não só de gerar, mas também de armazenar vida latente, vida pulsante. acho comovente mulher barriguda que vai ter menino.

à jurema, nely, joyce, maria, clarice, lya, lygia, marly, nélida, adélia, rachel, orides, cora, cecília, sophia, natália, florbela, cacilda, fernanda, marília, bibi, dolores, clara, gal, nana, rita, elis, elisa, alice, hilda, claudia, patrícia, zélia, e assim sucessivamente, em espiral vertiginosa: muitíssimo obrigado. por tanto, por tudo, agradeço a vocês, mulheres da minha trilha, irmãs porque a mãe natureza fez todas tão belas.

parir, gerar, criar: existir: eis a prova de destino tão valoroso.

a mulher brasileira, no alto a sua bandeira, saúda o povo & pede passagem!

que vocês, mulheres, de um modo bonito, de um modo delicado, conquistem o mundo!

um brinde a elas!

beijo todos!
paulo sabino.
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(do encarte do cd: Maria. artista: Maria Bethânia. autora dos versos: Joyce. gravadora: BMG Ariola.)

 

 

MULHERES DO BRASIL

 

No tempo em que a maçã foi inventada
Antes da pólvora, da roda e do jornal
A mulher passou a ser culpada
Pelos deslizes do pecado original
Guardiã de todas as virtudes
Santas e megeras, pecadoras e donzelas
Filhas de Maria ou deusas lá de Hollywood
São irmãs porque a Mãe Natureza fez todas tão belas
Tão belas
Ó Mãe, ó Mãe, ó Mãe
Nossa Mãe, abre teu colo generoso
Parir, gerar, criar e provar nosso destino valoroso
São donas de casa, professoras, bailarinas
Moças, operárias, prostitutas, meninas
Lá do breu das brumas vem chegando a bandeira
Saúda o povo e pede passagem a mulher brasileira
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(do site: Youtube. áudio extraído do álbum: Maria. artista & intérprete: Maria Bethânia. canção: Mulheres do Brasil. autora da canção: Joyce. gravadora: BMG Ariola.)

INICIAL
21 de dezembro de 2009

pessoas,
 
este poema lhes segue como um presente que, primeiramente, me foi dado pelo meu grande amigo de fé, meu irmão camarada (rs), césar guerra chevrand.
 
ele me escreveu que gostaria de compartilhar as linhas abaixo comigo. porém, tão lindas, tão significativas, e vindas de quem vem, que não resisti em dividi-las com vocês, apreciadores de poesia.
 
na obra da poeta sophia de mello breyner andresen, o mar possui lugar cativo. quem conhece a escritora portuguesa, bem sabe da sua adoração por águas marinhas.
 
césar, my lovely boy, muitíssimo obrigado pelo presente! as linhas eu já conhecia, mas tudo o que é bom faz bem re–conhecer, reler, reaver, re–ter. e vindo de quem vem (rs)… beijo enorme em você!
 
um outro bom em todos!
o preto,
paulo sabino / paulinho.
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(foto: césar guerra chevrand)

SARGAÇO MAR
17 de dezembro de 2009

meninos & meninas,

esta canção me comove por tudo: pela intérprete, pelo tema, pelos versos, pela música, pelo arranjo e pelo autor, que é “a” identidade do mar, como bem versejou elisa lucinda num lindo poema a ele dedicado. não imagino, quando penso nas águas marinhas, no canto que emitem, em toda simbologia que as cercam, ninguém mais afim a elas que ele, uma espécie de “netuno baiano” (rs), homem de relação estreita com TODO universo marinho, universo que transborda no meu olhar e na minha alma: o sábio, bonito e saboroso dorival caymmi.

atualmente, quando vou de encontro ao atlântico, esta é a canção que me embala. ela me traduz, traduz o meu desejo de águas, desejo sequioso, desesperado, desejo salgado, espelha e venta os meus sentidos aguados pelo mar.

escreveu a grande poeta portuguesa sophia de mello breyner:

Quando eu morrer voltarei para buscar
os instantes que não vivi junto do mar

que assim seja.

(odoiá!, minha mãe do mar.)

beijo molhado em vocês!
o preto.

(o áudio da canção segue em anexo, com um vídeo lindíssimo, que muito me comove pela beleza das imagens. fica a minha homenagem ao mestre marinho, que, hoje, certamente, vive cercado de sereias e seres fantásticos.)
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(versos extraídos do cd: Maré. artista: Adriana Calcanhotto. gravadora: Sony & BMG.)

 
Sargaço Mar (autor: Dorival Caymmi)

Quando se for
Esse fim de som
Doida canção
Que não fui eu que fiz
Verde luz verde cor
De arrebentação
Sargaço mar
Sargaço ar
Deusa de amor, deusa do mar
Vou me atirar, beber o mar
alucinado, desesperar
Querer morrer para viver
Com Iemanjá
Iemanjá, Odoiá
Iemanjá, Odoiá
Iemanjá, Odoiá
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violão: Gilberto Gil

SOBRE PLUMAS QUE SUSTENTAM UM MUNDO
5 de agosto de 2009

meninos, 

estes poemas seguem porque me fizeram refletir sobre questões que dizem respeito ao modo de vida que levamos. 

drummond alerta sobre, põe em xeque, algumas “regras” estabelecidas por uma maneira judaico-cristã de ver e entender o mundo. culpa, pecado, castigo, justiça divina, a existência de um deus, todos esses conceitos, de uma maneira ou de outra, estão inseridos no nosso quotidiano e na convivência nossa com o resto do mundo.  

até que ponto ser uma boa pessoa, aos olhos de um sistema cristão, garante algum bônus (espiritual e material)?, garante a existência de uma justiça divina?, um bem-estar nesta nossa vida? 

até que ponto devemos anular desejos e aspirações em prol de alguma recompensa provinda dos céus? 

as hipóteses para que um deus, supondo a existência deste, criasse um mundo como o nosso são como plumas: tão delicadas, tão difíceis de se sustentarem, que é bem possível que este deus, que nem ele saiba por que isso tudo foi gerado, a que finalidades atende. portanto, tais hipóteses, como plumas, caem, despencam. 

então, já que a vida se desnuda sem razão de ser, sem sentido, sem norte – são tantas as possibilidades, tantos os (divergentes) caminhos tomados para se fazer valer uma existência… -, estejamos preocupados em viver, simplesmente viver, respeitando-nos, ou seja, respeitando as nossas vontades e aspirações, e as vontades e aspirações alheias. de resto, é viver e deixar viver. até hoje, que eu saiba, ninguém bateu à porta dos que habitam este planeta, dizendo “cá estou, muito prazer, me chamo deus”, como bem escreveu fernando pessoa. 

antonio cicero, amigo e poeta de que muito gosto, possui versos que declaram: 

Ninguém vai nos trazer
nem recompensa, nem conta,
no final.
Ninguém vai nos dizer,
pra nós, o que é que conta,
e, afinal,
pra esclarecer:

prefiro pôr as cartas sobre 
a mesa:
não dou meu desejo a Deus.
Feroz é a natureza;
feroz, todo céu.  

(Próxima Parada, composição de Marina Lima e Antonio Cicero)

uma poeta, também por mim muito admirada, sophia de mello breyner, escreveu que há muito do divino no real. ou seja, se quisermos, não precisamos procurar a divindade na transcendência. não; a divindade encontra-se aqui, no plano da matéria, está ao nosso lado, é de carne, osso e carvão. basta olhar o mundo, admirar a maravilha que é o que, aqui, entre nós, está. o mais, não tem sentido, pois não há “razão de ser”.

sejamos bacanas na vida por respeito ao outro e não por um lugar ao lado do senhor, em sua morada, tão longe de nós.

enfim. aproveitem bastante as linhas que seguem. são de uma sabedoria…

beijo nocês tudo! 

 paulinho.

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OS DOIS VIGÁRIOS  carlos drummond de andrade 

Há cinqüenta anos passados,

Padre Olímpio bendizia,

Padre Júlio fornicava.

E Padre Olímpio advertia

e Padre Júlio triscava.

Padre Júlio excomungava

quem se erguesse a censurá-lo

e Padre Olímpio em seu canto

antes de cantar o galo

pedia a Deus pelo homem.

Padre Júlio em seu jardim

colhia flor e mulher

num contentamento imundo.

Padre Olímpio suspirava,

Padre Júlio blafesmava.

Padre Olímpio, sem leitura

latina, sem ironia,

e Padre Júlio, criatura

de Ovídio, ria, atacava

a chã fortaleza do outro.

Padre Olímpio silenciava.

Padre Júlio perorava,

rascante e politiqueiro.

Padre Olímpio se omitia

e Padre Júlio raptava

patroa e filhas do próximo,

outros filhos lhe aditava.

Padre Júlio responsava

os mortos, pedindo contas

do mal que apenas pensaram

e desmontava filáucias

de altos brasões esboroados

entre moscas defuntórias.

Padre Olímpio respeitava

as classes depois de extintos

os sopros dos mais distintos

festeiros e imperadores.

Se Padre Olímpio perdoava,

Padre Júlio não cedia.

Padre Júlio foi ganhando

com tempo cara diabólica

e em sua púrpura calva,

em seu mento proeminente,

ardiam em brasas. E Padre

Olímpio se desolava

de ver um padre demente

e o Senhor atraiçoado.

E Padre Júlio oficiava

como oficia um demônio

sem que o escândalo esgarçasse

a santidade do ofício.

Padre Olímpio se doía,

muito se mortificava

que nenhum anjo surgisse

a consolá-lo em segredo:

“Olímpio, se é tudo um jogo

do céu com a terra, o desfecho

dorme entre véus de justiça.”

Padre Olímpio encanecia

e em sua estrita piedade,

em seu manso pastoreio,

não via, não discernia

a celeste preferância.

Seria por Padre Júlio?

Valorizava-se o inferno?

E sentindo-se culpado

de conceber turvamente

o augustíssimo pecado

atribuído ao Padre Eterno,

sofre — rezando sem tino

todo se penitenciava.

Em suas costas botava

os crimes de Padre Júlio,

refugando-lhe os prazeres.

Emagrecia, minguava,

sem ganhar forma de santo.

Seu corpo se recolhia

à própria sombra, no solo.

Padre Júlio coruscava,

ria, inflava, apostrofava.

Um pecava, outro pagava.

O povo ia desertando

a lição de Padre Olímpio.

Muito melhor escutava

de Padre Júlio as bocagens.

Dois raios, na mesma noite,

os dois padres fulminaram.

Padre Olímpio, Padre Júlio

iguaizinhos se tornaram:

onde o vício, onde a virtude,

ninguém mais o demarcava.

Enterrados lado a lado

irmanados confundidos,

dos dois padres consumidos

juliolímpio em terra neutra

uma flor nasce monótona

que não se sabe até hoje

(cinqüenta anos se passaram)

se é de compaixão divina

ou divina indiferença.

 

TRISTEZA NO CÉU  carlos drummond de andrade

 

No céu também há uma hora melancólica.

Hora difícil, em que a dúvida penetra as almas.

Por que fiz o mundo? Deus se pergunta

e se responde: Não sei.

 

Os anjos olham-no com reprovação,

e plumas caem.

 

Todas as hipóteses: a graça, a eternidade, o amor

caem, são plumas.

 

Outra pluma, o céu se desfaz.

Tão manso, nenhum fragor denuncia

o momento entre tudo e nada,

ou seja, a tristeza de Deus.