bacanas,
estes versos estão guardados há um tempo, esperando, acredito, o momento oportuno para a chegada. eis que este momento, ao meu ver, chegou.
e chegou por conta da partida de duas GRANDES amigas, numa missão muito bonita. foram para o interior do estado do amazonas trabalhar em unidades de preservação da floresta, a fim de diminuir os impactos ambientais causados pela mão humana. passaram num concurso público e, agora, cada uma é chefe de uma das unidades de conservação existentes.
mulheres lindas, guerreiras, que batalham pelos seus espaços, correm atrás do que almejam, com mente e coração voltados para o melhor da vida: assim como o poeta que lhes segue, poeta nascido entre rebojos, oriundo das terras barrentas e dos rios de água negra transparente, onde se encontram gabi scelza, a minha “príncipa” (eu sou o seu “princeso” – rs), e rachel acosta, um dos seres mais bons que conheço, de uma bondade que respira inocência. minhas meninas, meus jasmins, que a jornada que se inicia agora seja tão saborosa, tão acolhedora e tão benéfica quanto vocês! o preto está aqui, sempre que precisarem! lembrem-se: a nossa família não é metafísica!
thiago de mello é um poeta que canta tudo quanto cabe num canto: o amor, a dor, a morte, o seu povo — povo de rios e seringais, de lendas e cirandas, povo sofrido —. não é à toa que o livro “faz escuro mas eu canto” seja aberto por linhas de pablo neruda (poeta chileno igualmente apaixonado por sua terra, seu povo, por temas ligados ao amor e à finitude da existência), a respeito da amizade que os une e da apaixonada obra do poeta amazonense.
o que me comove muitíssimo na seleção que aqui se apresenta é a carga sentimental depositada nos versos. eu, sobretudo um homem de arroubos sentimentais (rs), não deixaria de me emocionar.
o canto de thiago de mello é o canto que promove bem-estar: “a coisa tá preta”, “a situação é complicada”, tá feio, tá escuro, mas, mesmo no escuro, sigo cantando. porque, acredito mesmo, semear o canto bom, o canto do amor, da justiça, pode trazer, pelo menos ajudar a trazer, a luz que iluminará muitos dos nossos breus.
apreciem sem moderação!
beijo arejado, são, em todos!
o preto.
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(todos os poemas extraídos do livro Faz escuro mas eu canto, de Thiago de Mello, editora Bertrand Brasil)
Os estatutos do homem
ARTIGO I.
Fica decretado que agora vale a verdade,
que agora vale a vida,
e que, de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira.
ARTIGO II.
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
ARTIGO III.
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.
ARTIGO IV.
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.
PARÁGRAFO ÚNICO:
O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino.
ARTIGO V.
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.
ARTIGO VI.
Fica estabelecida, durante os séculos da vida,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
ARTIGO VII.
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
ARTIGO VIII.
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
sabendo que é a água
que dá à planta o milagre da flor.
ARTIGO IX.
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.
ARTIGO X.
Fica permitido a qualquer pessoa,
a qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.
ARTIGO XI.
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.
ARTIGO XII.
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
Tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
PARÁGRAFO ÚNICO:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.
ARTIGO XIII.
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.
ARTIGO FINAL.
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
A vida verdadeira
Pois aqui está a minha vida.
Pronta para ser usada.
Vida que não se guarda
nem se esquiva, assustada.
Vida sempre a serviço
da vida.
Para servir ao que vale
a pena e o preço do amor.
Ainda que o gesto me doa,
não encolho a mão: avanço
levando um ramo de sol.
Mesmo enrolada de pó,
dentro da noite mais fria,
a vida que vai comigo
é fogo:
está sempre acesa.
Vem da terra dos barrancos
o jeito doce e violento
da minha vida: esse gosto
da água negra transparente.
A vida vai no meu peito,
mas é quem vai me levando:
tição ardente velando,
girassol na escuridão.
Carrego um grito que cresce
cada vez mais na garganta,
cravando seu travo triste
na verdade do meu canto.
Canto molhado e barrento
de menino do Amazonas
que viu a vida crescer
nos centros da terra firme.
Que sabe a vinda da chuva
pelo estremecer dos verdes
e sabe ler os recados
que chegam na asa do vento.
Mas sabe também o tempo
da febre e o gosto da fome.
Nas águas da minha infância
perdi o medo entre os rebojos.
Por isso avanço cantando.
Estou no centro do rio,
estou no meio da praça.
Piso firme no meu chão,
sei que estou no meu lugar,
como a panela no fogo
e a estrela na escuridão.
O que passou não conta?, indagarão
as bocas desprovidas.
Não deixa de valer nunca.
O que passou ensina
com sua garra e seu mel.
Por isso é que agora vou assim
no meu caminho. Publicamente andando.
Não, não tenho caminho novo.
O que tenho de novo
é o jeito de caminhar.
Aprendi
(o caminho me ensinou)
a caminhar cantando
como convém
a mim
e aos que vão comigo.
Pois já não vou mais sozinho.
Aqui tenho a minha vida:
feita à imagem do menino
que continua varando
os campos gerais
e que reparte o seu canto
como o seu avô
repartia o cacau
e fazia da colheita
uma ilha de bom socorro.
Feita à imagem do menino
mas à semelhança do homem:
com tudo que ele tem de primavera
de valente esperança e rebeldia.
Vida, casa encantada,
onde eu moro e mora em mim,
te quero assim verdadeira
cheirando a manga e jasmim.
Que me sejas deslumbrada
como ternura de moça
rolando sobre o capim.
Vida, toalha limpa,
vida posta na mesa,
vida brasa vigilante,
vida pedra e espuma,
alçapão de amapolas,
o sol dentro do mar,
estrume e rosa do amor:
a vida.
Há que merecê-la.
O pão de cada dia
Que o pão encontre na boca
o abraço de uma canção
construída no trabalho.
Não a fome fatigada
de um suor que corre em vão.
Que o pão do dia não chegue
sabendo a travo de luta
e a troféu de humilhação.
Que seja a bênção da flor
festivamente colhida
por quem deu ajuda ao chão.
Mais do que flor, seja fruto
que maduro se oferece,
sempre ao alcance da mão.
Da minha e da tua mão.
A fruta aberta
Agora sei quem sou.
Sou pouco, mas sei muito,
porque sei o poder imenso
que morava comigo,
mas adormecido como um peixe grande
no fundo escuro e silencioso do rio
e que hoje é como uma árvore
plantada bem alta no meio da minha vida.
Agora sei as coisas como são.
Sei porque a água escorre meiga
e porque acalanto é o seu ruído
na noite estrelada
que se deita no chão da nova casa.
Agora sei as coisas poderosas
que valem dentro de um homem.
Aprendi contigo, amada.
Aprendi com a tua beleza,
com a macia beleza de tuas mãos,
teus longos dedos de pétalas de prata,
a ternura oceânica do teu olhar,
verde de todas as cores
e sem nenhum horizonte;
com a tua pele fresca e enluarada,
a tua infância permanente,
tua sabedoria fabulária
brilhando distraída no teu rosto.
Grandes coisas simples aprendi contigo,
com o teu parentesco com os mitos mais terrestres,
com as espigas douradas no vento,
com as chuvas de verão
e com as linhas da minha mão.
Contigo aprendi
que o amor reparte
mas sobretudo acrescenta,
e a cada instante mais aprendo
com o teu jeito de andar pela cidade
como se caminhasses de mãos dadas com o ar,
com o teu gosto de erva molhada,
com a luz dos teus dentes,
tuas delicadezas secretas,
a alegria do teu amor maravilhado,
e com a tua voz radiosa
que sai da tua boca
inesperada como um arco-íris
partindo ao meio e unindo os extremos da vida,
e mostrando a verdade
como uma fruta aberta.
Janela do amor imperfeito
Alta esquina no céu, tua janela
surge da sombra e a sombra faz dourada.
Já não me sinto só defronte dela,
me chega doce o fel da madrugada.
Atrás dela te estendes alva e em sonho
me levas desamado sem saber
que mais amor te invento e que te ponho
sobre o corpo um lençol de amanhecer.
Doce é saber que dormes leve e pura,
depois da dura e fatigante lida
que a vida já te deu. Mas é doçura
que sabe a sal no mar azul do peito
onde o amor sofre a pena malferida
de ser tão grande e ser tão imperfeito.
A aprendizagem amarga
Chega um dia em que o dia se termina
antes que a noite caia inteiramente.
Chega um dia em que a mão, já no caminho,
de repente se esquece do seu gesto.
Chega um dia em que a lenha já não chega
para acender o fogo da lareira.
Chega um dia em que o amor, que era infinito,
de repente se acaba, de repente.
Força é saber amar, perto e distante,
com o encanto de rosa livre na haste,
para que o amor ferido não se acabe
na eternidade amarga de um instante.
Botão de rosa
Nos recôncavos da vida
jaz a morte.
Germinando
no silêncio.
Floresce
como um girassol no escuro.
De repente vai se abrir.
No meio da vida, a morte
jaz profundamente viva.
Cantiga quase de roda
Na roda do mundo
lá vai o menino.
O mundo é tão grande
e os homens tão sós.
De pena, o menino
começa a cantar.
(Cantigas afastam
as coisas escuras.)
Mãos dadas aos homens,
lá vai o menino,
na roda da vida
rodando e cantando.
A seu lado, há muitos
que cantam também:
cantigas de escárnio
e de maldizer.
Mas como ele sabe
que os homens, embora
se façam de fortes,
se façam de grandes,
no fundo carecem
de aurora e de infância
— então ele canta
cantigas de roda
e às vezes inventa
algumas — mas sempre
de amor ou
de amigo.
Cantigas que tornem
a vida mais doce
e mais brando o peso
das sombras que o tempo
derrama, derrama
na fronte dos homens.
Na roda do mundo
lá vai o menino,
rodando e cantando
seu canto de infância.
Pois sabe que os homens
embora se façam
de graves, de fortes,
no fundo carecem
de claras cantigas
— senão ficam ocos,
senão endoidecem.
E então ele segue
cantando de bosques,
de rosas e de anjos,
de anéis e cirandas,
de nuvens e pássaros,
de sanchas senhoras
cobertas de prata,
de barcas celestes
caídas no mar.
Na roda do mundo,
mãos dadas aos homens,
lá vai o menino
rodando e cantando
cantigas que façam
o mundo mais manso,
cantigas que façam
a vida mais doce,
cantigas que façam
os homens mais crianças
EPITÁFIO
O canto desse menino
talvez tenha sido em vão.
Mas ele fez o que pôde.
Fez sobretudo o que sempre
lhe mandava o coração.
Notícia da manhã
Eu sei que todos a viram
e jamais a esquecerão.
Mas é possível que alguém,
denso de noite, estivesse
profundamente dormido.
E aos dormidos — e também
aos que estavam muito longe
e não puderam chegar,
aos que estavam perto e perto
permaneceram sem vê-la;
aos moribundos nos catres
e aos cegos de coração —
a todos que não a viram
contarei desta manhã
— manhã é céu derramado
é cristal de claridão —
que reinou, de leste a oeste,
de morro a mar — na cidade.
Pois dentro desta manhã
vou caminhando. E me vou
tão feliz como a criança
que me leva pela mão.
Não tenho nem faço rumo:
vou no rumo da manhã,
levado pelo menino
(ele conhece caminhos
e mundos, melhor do que eu)
Amorosa e transparente,
esta é a sagrada manhã
que o céu inteiro derrama
sobre os campos, sobre as casas,
sobre os homens, sobre o mar.
Sua doce claridade
já se espalhou mansamente
por sobre todas as dores.
Já lavou a cidade. Agora,
vai lavando corações
(não o do menino; o meu,
que é cheio de escuridões).
Por verdadeira, a manhã
vai chamando outras manhãs
sempre radiosas que existem
(e às vezes tarde despontam
ou não despontam jamais)
dentro dos homens, das coisas:
na roupa estendida à corda,
nos navios chegando,
na torre das igrejas,
nos pregões dos peixeiros,
na serra circular dos operários,
nos olhos da moça que passa, tão bonita!
A manhã está no chão, está nas palmeiras,
está no quintal dos subúrbios,
está nas avenidas centrais,
está nos terraços dos arranha-céus.
(Há muita, muita manhã
no menino; e um pouco em mim.)
A beleza mensageira
desta radiosa manhã
não se resguardou no céu
nem ficou apenas no espaço,
feita de sol e de vento,
sobrepairando a cidade.
Não: a manhã se deu ao povo.
A manhã é geral.
As árvores da rua,
a réstia do mar,
as janelas abertas,
o pão esquecido no degrau,
as mulheres voltando da feira,
os vestidos coloridos,
o casal de velhos rindo na calçada,
o homem que passa com cara de sono,
a provisão de hortaliças,
o negro na bicicleta,
o barulho do bonde,
os passarinhos namorando
— ah! pois todas essas coisas
que minha ternura encontra
num pedacinho de rua,
dão eterno testemunho
da amada manhã que avança
e de passagem derrama
aqui uma alegria,
ali entrega uma frase
(como o dia está bonito!)
à mulher que abre a janela,
além deixa uma esperança,
mais além uma coragem,
e além, aqui e ali
pelo campo e pela serra,
aos mendigos e aos sovinas,
aos marinheiros, aos tímidos;
aos desgraçados, aos prósperos,
aos solitários, aos mansos,
às velhas virgens, às puras
e às doidivanas também,
a manhã vai levantando
uma alegria de viver,
vai derramando um perdão,
vai derramando uma vontade de cantar.
E de repente a manhã
— manhã é céu derramado,
é claridão, claridão —
foi transformando a cidade
numa praça imensa praça,
e dentro da praça o povo
o povo inteiro cantando,
dentro do povo o menino
me levando pela mão.