NA LUTA, EU SOU MEUS PASSOS
26 de novembro de 2014

Piaba & Paulo Sabino_Diamantina (MG)

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eu sou meus passos bem mais que meu caminho: o meu caminho é tudo aquilo que construí até aqui, é o que se pode ver do meu caminhar, é a minha trajetória. o resto, isto é, o que me resta, é caminho por construir. e caminho por construir é construído a partir dos passos.

eu sou meus passos bem mais que meu caminho: o meu caminho é a estrada delineada até então, o que passou, o que não mais me cabe. os meus passos são o presente, o agora, o que está sendo, o quando: quando ando, quando desando, quando caminho, quando descaminho, quando insisto.

no caminhar, muitos — os que começaram a caminhada antes de mim — vão à frente, outros — os que começarão a caminhada — virão depois, e, ao meu lado, caminha a minha gente, os que começaram a caminhada juntamente comigo, nos simultâneos, nos caminhos coincidentes, e distanciamentos, nos caminhos divergentes.

bochechas de juventude (os mais jovens & o seu porvir), tristes antigamentes (os mais velhos & suas memórias): e cada ser que vai adiante leva seu fardo sozinho, que viver é de cada um, é experiência única, intransferível.

as minhas mãos vão repartindo o alimento (eis, aos senhores, a minha parcela de pão-poesia, o mais rico alimento anímico) & os meus olhos buscam o que, à frente, pode ser sombra lenta (para momentos de total relaxamento), descanso urgente (para momentos mais agitados, mais conturbados), caminho de água corrente (para limpeza & purificação do ser), sussurro de doce acalanto (para o sossego, para a tranqüilidade, do ser).

eu sou meus passos mais que meu caminho & me levo com cuidado, buscando que os meus ombros não se choquem com outros ombros nos assombros do acaso, buscando um caminho que não se choque com o caminho de outros irmãos de trilha nos imprevistos da vida, e buscando que os meus pés não atravessem o desenho de outros pés em seus compassos, buscando um caminho que não atropele o caminho de outros irmãos de trilha nos imprevistos da vida, e que eu não acorde a serpente sob a folhagem nem dê chance da picada do escorpião inclemente: que eu não acorde, que eu não dê chance, aos bichos peçonhentos & seus venenos, dispostos à beira do caminhar.

eu sou meus passos bem mais que meu caminho: e, no caminhar dos passos, a vida do homem é a luta contra a solidão, a vida do homem é a luta contra o galho onde pode esconder-se por medo de viver a vida, a vida do homem é a luta contra o céu sem ninguém, céu vazio, inabitado, onde não se vê luz nem horizontes, onde não se vê nada além.

enquanto a vida do homem é a luta contra a solidão, a vida do poeta é a luta contra o silêncio.

a vida do poeta é a luta contra o silêncio: o silêncio de dentro (quando a alma cala o desejo de dizer alguma coisa em verso) & o de fora (o silêncio do mundo, sua mudez inescrutável), o silêncio do outro (o silêncio que está fora do seu alcance) & o de si (o silêncio que está ao seu alcance mas não sob seu domínio).

a vida do poeta é a luta contra o silêncio: todo dia, toda hora, do nascer até o fim: a vida do poeta é dar voz a verso o mais que puder.

(a voz da poesia é voz que não se cala, que não se pode calar.)

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: poemAteu. autor: Abel Silva. editora: 7Letras.)

 

 

EU SOU MEUS PASSOS

 

Eu sou meus passos
bem mais que meu caminho
e muitos vão à frente
outros virão depois
e ao meu lado caminha
a minha gente
nos simultâneos e distanciamentos

bochechas de juventudes
tristes antigamentes
e cada ser que vai adiante
leva seu fardo sozinho
que viver é de cada um

as mãos vão dividindo o alimento
e os olhos buscam o que, à frente,
pode ser sombra lenta, descanso urgente,
caminho de água corrente
sussurro de doce acalanto.

Eu sou meus passos
mais que meu caminho
e me levo com cuidado
buscando que os meus ombros
não se choquem com outros ombros
nos assombros do acaso,
e não atravessem o desenho
de outros pés em seus compassos

e que eu não acorde a serpente
sob a folhagem guardada

nem do escorpião inclemente
dê a chance da picada.

 

 

A LUTA

 

A vida do homem
é a luta contra a solidão.
A do poeta
contra o silêncio.

De dentro
e de fora.

Do outro
e de si.

Todo dia
toda hora.

Do nascer
até o fim.

O POETA & SUAS INVENÇÕES DE COMPORTAMENTO
16 de março de 2013

????????Livros_Manoel de Barros

(Nas fotos, o poeta Manoel de Barros & suas invenções de comportamento: alguns dos seus livros de poesia & a inscrição “Só dez por cento é mentira”, título do documentário de Pedro Cezar sobre o poeta.)
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vão dizer que o poeta não existe propriamente “dito”: o que existe propriamente “dito” são os versos, o que existe propriamente “dito” é a poesia. afinal, o corpo, a carne, da poesia constitui-se de palavras, a poesia constitui-se de matéria verbal, constitui-se daquilo que é propriamente “dito”.

(o poeta se faz da poesia. é a poesia quem justifica a existência do poeta. um alguém só se diz poeta caso pouse nele a poesia.)

vão dizer que o poeta é um ente de sílabas, um ente formado por fonemas, um ente formado por verbos, um ente de carne, osso & palavras.

vão dizer que o poeta tem vocação para “ninguém”. o pai do poeta costumava alertá-lo: “quem acha bonito & pode passar a vida a ouvir o som das palavras, ou é ninguém ou zoró.”

(zoró: povo indígena habitante da região noroeste do mato grosso do sul & da região sul de rondônia.)

o poeta & sua vocação para “ninguém”: ele não serve para mais nada que não seja achar bonito & passar a vida a ouvir o som das palavras. um alienado do mundo, um vagabundo existencial.

o poeta & sua vocação para “ninguém”: tendo vocação para “ninguém”, o poeta pode transfigurar-se no que desejar, no que bem entender — o que, no fundo, é uma exigência da poesia.

o poeta teria treze anos. de tarde, foi olhar a cordilheira dos andes, que se perdia nos longes da bolívia, e veio uma iluminura nele.

foi a sua primeira iluminura, a sua primeira arte de ornar uma página.

daí, botou o seu primeiro verso.

mostrou a obra para sua mãe. a mãe falou: “agora você vai ter que assumir as suas irresponsabilidades.”

o poeta assumiu: entrou no mundo das imagens.

o poeta é um irresponsável da linguagem porque a poesia não possui responsabilidades. a poesia não tem que. a poesia simplesmente é. sem maiores pretensões, obrigações & expectativas. a poesia pode justamente tudo porque não deve absolutamente nada. para com a poesia não existem formalidades. não se trata de memorando, requerimento ou carta de intenção: não existe um propósito, um objetivo.

a poesia mora no mundo das imagens, das metáforas, dos jogos sintáticos, dos deslocamentos da linguagem.

o poeta não quer saber como as coisas se comportam. o poeta quer inventar comportamento para as coisas.

segundo o poeta, a tarefa mais lídima, mais genuína, mais autêntica, da poesia é a de equivocar, é a de confundir, é a de deslocar, o sentido das palavras, não havendo nenhum “descomportamento”, não havendo nenhuma falta de comportamento adequado, não havendo nenhum “desvio de conduta”, senão que alguma experiência lingüística.

é apenas um descomportamento semântico, apenas um descomportamento para com os sentidos (convencionais) das palavras.

se o poeta se desvirtua a pássaros, se o poeta se desvirtua em árvores, se o poeta se desvirtua para pedras, essa mudança de comportamento “gental” (referente à gente, a pessoas) para comportamento animal, vegetal ou pedral, é apenas um descomportamento semântico, um descomportamento ligado ao sentido convencional dessas palavras.

o poeta apenas faz, apenas cria, apenas produz, o desvio do sentido das palavras & das finalidades das coisas: se ele diz que “grota” é uma palavra apropriada para ventar nas pedras ou que os passarinhos faziam paisagens na sua infância, isso é apenas um desvio das tarefas da grota (que não é a de ventar nas pedras) & dos passarinhos (que não é a de fazer paisagens).

isso — de gerar o desvio do sentido das palavras & das finalidades das coisas — é apenas um descomportamento lingüístico que não ofende, que não fere, que não prejudica, que não viola, que não contraria, a natureza dos passarinhos nem das grotas.

se o poeta diz ainda que é mais feliz quem descobre o que não presta do que quem descobre ouro, o poeta pensa que, ainda assim, não será atingido pela bobagem, pela tolice, pela asneira. ele apenas não tem sabedoria demais, conhecimentos aprofundados: o poeta apenas não tem polimentos de ancião.

(o poeta: um inventor de comportamentos: uma sempre criança do verbo, um sempre aprendiz da palavra.)

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Poesia completa. autor: Manoel de Barros. editora: Leya.)

 

 

O POETA

 

Vão dizer que não existo propriamente dito.
Que sou um ente de sílabas.
Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém.
Meu pai costumava me alertar:
Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o som
das palavras
Ou é ninguém ou zoró.
Eu teria treze anos.
De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que
se perdia nos longes da Bolívia
E veio uma iluminura em mim.
Foi a primeira iluminura.
Daí botei meu primeiro verso:
Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
Mostrei a obra pra minha mãe.
A mãe falou:
Agora você vai ter que assumir as suas
irresponsabilidades.
Eu assumi: entrei no mundo das imagens.

 

 

COMPORTAMENTO

 

Não quero saber como as coisas se comportam.
Quero inventar comportamento para as coisas.
Li uma vez que a tarefa mais lídima da poesia é a
de equivocar o sentido das palavras
Não havendo nenhum descomportamento nisso
senão que alguma experiência linguística.
Noto que às vezes sou desvirtuado a pássaros, que
sou desvirtuado em árvores, que sou desvirtuado
para pedras.
Mas que essa mudança de comportamento gental
para animal vegetal ou pedral
É apenas um descomportamento semântico.
Se eu digo que grota é uma palavra apropriada para
ventar nas pedras,
Apenas faço o desvio da finalidade da grota que
não é a de ventar nas pedras.
Se digo que os passarinhos faziam paisagens na
minha infância,
É apenas um desvio das tarefas dos passarinhos que
não é a de fazer paisagens.
Mas isso é apenas um descomportamento linguístico que
não ofende a natureza dos passarinhos nem das grotas.
Mudo apenas os verbos e às vezes nem mudo.
Mudo os substantivos e às vezes nem mudo.
Se digo ainda que é mais feliz quem descobre o que não
presta do que quem descobre ouro —
Penso que ainda assim não serei atingido pela bobagem.
Apenas eu não tenho polimentos de ancião.

SEDE TERCEIRA
18 de março de 2011

(retratos de carlos drummond de andrade & clarice lispector em sede terceira)

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depois de um tanto viver, alcançando a idade terceira, mergulha-se na terceira sede, mergulha-se na maneira terceira de matar a sede de vida.

nesta sede terceira, algumas constatações:

ser inteiro custa caro. tão caro que me endividei por não me dividir. sem maiores concessões.

vasculhando o porão da memória, parto em viagem, em expedição, para provar que já morri — algumas boas vezes —. e escavo boletins, cartas & álbuns — o retrocesso da minha letra ao garrancho, letra-moleque, na idade primeira —.

ser inteiro custa caro. uma série de dores, uma série de dissabores…

parto em expedição e, nela, vou achando o que não ansiava achar, esbarrando em objetos despossuídos de lógica, objetos que me encontram antes de qualquer pretensão minha de encontrá-los.

e concluo: tão simples a vida, tão banais as realizações, tão efêmera a estada, o tempo de vivências, que, o que fiz, cabe numa caixa de sapatos.

são muitas as memórias, apesar de efêmera a estada, e desorganizadas, sem cronologia, sem intenções de.

a verdade ordenada é uma mentira. o passado tem sentido se permanecer desorganizado.

(fujo da claridade, pois ela não é muito clara, não é objetiva, não consegue ser, e, assim, refulge a poeira.)

um autorretrato, pela falta de claridade, não seria tão fidedigno. a par desse fato, assisto à revoada de insetos das ciladas.

tantas são as relíquias envaidecidas pelo musgo do tempo, tantas as invenções da memória (quantas peças prega a memória?)…

quantas foram as miudezas (em mim) que não combinavam com o conjunto e, na falta de harmonia, abandonei num depósito em mim?

se me faltou confiança para restaurar as miudezas (em mim) — que não combinavam com o conjunto — ao convívio com diversas outras coisas à mostra em mim, faltou coragem para excluí-las em definitivo.

(as miudezas que não combinavam com o conjunto permaneceram aqui, guardadas num depósito em mim.)

não aprendemos a desaprender. se tais miudezas perduram, somos também o que estocamos. tal desperdício nos molda, tal desperdício nos forma.

não doamos nada (não aprendemos a desaprender), nem a palavra passamos adiante.

(arte poética: há várias escolas, em nenhuma se ensina, já declarou o poeta ricardo silvestrin.)

o porão, onde ficam miudezas que não combinam com o conjunto, o porão tem vida própria, e respira, e vive do que jogamos lá, do que descartamos.

tudo pode fermentar: as mais variadas & díspares lembranças, em desordem completa.

tudo pode nascer sem o mérito do grito, sem o mérito do alarde, do alarido, tudo pode nascer baixinho, quase imperceptível, no murmúrio, ou no estalar do abraço.

tudo pode nascer, ainda que quieto, ainda que entocado.

tudo pode nascer, ainda que abafado.

permitam-se à vida!

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Terceira sede. autor: Fabrício Carpinejar. editora: Bertrand Brasil.) 

 

SEGUNDA ELEGIA

Ser inteiro custa caro.
Endividei-me por não me dividir.
Atrás da aparência há uma reserva de indigência,
a volúpia dos restos.

Parto em expedição para provar que já morri.
E escavo boletins, cartas e álbuns
— o retrocesso da minha letra ao garrancho.

O passado tem sentido se permanecer desorganizado.
A verdade ordenada é uma mentira.

O musgo envaidece as relíquias. Os dedos retiram as teias,
assisto à revoada de insetos das ciladas.
Fujo da claridade, refulge a poeira.
O par de joelhos na imobilidade de um rochedo.

Reviso o testamento alisando a textura,
como um gramático da seda.
Desvendo o que presta pelo som do corte.

O que ansiava achar não acho
e esbarro em objetos despossuídos de lógica
que me encontram antes de qualquer pretensão.

O que fiz cabe numa caixa de sapatos.

Colecionava talhos de madeira, bonecos
adornados com a ponta miúda do canivete.
Lá estava um dos sobreviventes, desfocado,
vizinho das medalhas escolares
e dos parafusos condoídos de ferrugem.

Um autorretrato não seria tão fidedigno.
Eu era aquela frincha de chão florido, casca e húmus.

Quantas foram as miudezas que não combinavam
com o conjunto e, na falta de harmonia,
abandonei no depósito da infância?

E se faltou confiança para restaurá-las ao convívio,
faltou coragem para excluí-las em definitivo.

Somos o desperdício do que estocamos.
Não aprendemos a desaprender.
Não doamos nada, nem a palavra passamos adiante.

O porão tem vida própria e respira
o que jogamos fora.
O que refugamos na ceia volta a nos mastigar.

Tudo pode fermentar: o forro, os passos, o odor do braço.
Tudo pode nascer sem o mérito do grito,
no murmúrio ou estalar do abraço.

Tudo pode nascer, ainda que abafado.