(Paulo Sabino, ainda pequeno, e seu avô, o ex-capitão da areia & violonista baiano Waldemar Sabino.)
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o que me motivou a ler o livro que integra esta publicação foi puro sentimento.
meu avô paterno, pai do meu pai, waldemar sabino, foi um baiano de salvador que, sabia eu, fora menino de rua durante uma parte da sua infância, quando morreram seus pais & sua avó enlouqueceu (diz-se que a velha andava descalça pelas ruas do pelourinho, falando sozinha).
no entanto, sabe-se lá por que, talvez pela minha proximidade de neto & por não constituir exatamente a imagem do meu avô como um menino de rua durante parte da sua infância, fiquei surpreso quando, há pouco tempo, minha mãe, a minha cabocla jurema armond, me contou que, segundo o meu avô, até a reviravolta que deu a sua vida por causa do violão & da música, a sua biografia, no período de abandono, quando perambulava pelas ruas de salvador, é a história retratada no livro, do seu grande & admirado conterrâneo, jorge — mais que — amado.
apesar de fictícios os personagens & o grupo, intitulado “capitães da areia” (são meninos que se abrigam no cais do porto de salvador, num trapiche abandonado, de frente prum areal, e que furtam, roubam, ferem, na luta pela sobrevivência diária), jorge amado dá ao seu romance um tom de veracidade através da construção da sua narrativa, tocando, de forma lírica & contundente, num problema que assola o país desde que chamaram estas terras de brasil: as crianças que são socialmente abandonadas, crianças marginais (porque estão à margem da sociedade, não integradas), crianças alijadas dos deveres & direitos de um estado, de uma nação.
para a sorte de waldemar sabino, num dos dias em que andava pelas ruas de salvador, ouviu uma música que vinha de um bar da rua por onde passava. resolveu parar na porta & ficou completamente fascinado pelo violão que tocava, acompanhado por outros instrumentos, alguns sambas-canções. waldemar sabino voltou ao bar todos os dias, e assistia com gosto à apresentação dos músicos, especialmente à do violonista & seu violão. de tanto aparecer & já demonstrando interesse pelo instrumento, o violonista do bar perguntou se ele gostaria de aprender a tocar o instrumento. waldemar sabino fez que sim & logo na seqüência o violonista tornou-se seu “padrinho” (como ele gostava de chamar) & tutor, o dono do violão que en-cantou seu coração. aos dezoito anos resolveu tentar a sorte numa cidade maior, o rio de janeiro. como todo nordestino pobre & artista, passou por muitas dificuldades, até que, mais uma vez, a sorte lhe sorriu: a oportunidade de integrar a orquestra de uma rádio & ter seu ordenado fixo — além dos extras com as apresentações que fazia quando não tocava na orquestra—. assim waldemar sabino comprou sua casa ampla com um belíssimo & enorme quintal, criou & educou seus filhos, e recebeu a família para almoços aos domingos, onde, sempre após as refeições, ele tocava suas canções preferidas — muito dorival (caymmi), muito herivelto (martins), muito ataulfo (alves), muito cartola, e uns tantos boleros.
foi um baiano orgulhoso de sua história & sua terra — até morrer, seus maiores ídolos foram jorge amado & dorival caymmi, e tinha um respeito imenso por joão gilberto.
(herdei a sua coleção de livros do jorge — mais que — amado & alguns dos seus discos do dorival.)
a lembrança maior que tenho do meu avô é a dele com seu violão para tudo que é lugar, levava-o sempre que podia.
ler este romance pela primeira vez quase aos quarenta anos foi um resgate da minha história, de um passado que resultou em mim & nos que chegam em minha família. terminei o livro muito emocionado, com meu avô muito na cabeça, “a sua biografia”, pensando na sua felicidade por ter alcançado um destino feliz, pensando no que poderia ter-lhe acontecido se ele não passasse por aquela ruazinha da sua velha são salvador, não ouvisse os acordes daquele que se tornou o seu maior amante & não tivesse o acolhimento daquele que se tornou seu padrinho.
porque sabemos que o destino de waldemar sabino, infelizmente, não foi o mesmo da imensa maioria dos capitães da areia.
fica a minha homenagem a estes dois belos baianos: ao waldemar & ao jorge, que, mesmo não sabendo, escreveu a biografia do meu avô, do meu eterno & terno capitão da areia.
beijo todos!
paulo sabino.
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(trechos do livro: Capitães da areia. autor: Jorge Amado. editora: Martins.)
“Depois o Sem-Pernas ficou muito tempo olhando as crianças que dormiam. Ali estavam mais ou menos cinqüenta crianças, sem pai, sem mãe, sem mestre. Nada possuíam além da liberdade de correr as ruas. Levavam vida nem sempre fácil, arranjando o que comer e o que vestir, ora carregando uma mala, ora furtando carteiras e chapéus, ora ameaçando homens, por vezes pedindo esmolas. E o grupo era de mais de cem crianças, pois muitas outras não dormiam no trapiche. Se espalhavam nas portas dos arranha-céus, nas pontes, nos barcos virados na areia do Porto da Lenha. Nenhuma delas reclamava. Por vezes morria um de moléstia que ninguém sabia tratar. Quando calhava vir o padre José Pedro, ou a mãe-de-santo Don’Aninha ou também o Querido-de-Deus, o doente tinha algum remédio. Nunca, porém, era como um menino que tem sua casa. O Sem-Pernas ficava pensando.
E achava que a alegria daquela liberdade era pouco para a desgraça daquela vida.”
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“— Não deixam os pobres viver… Não deixam nem o deus dos pobres em paz. Pobre não pode dançar, não pode cantar pra seu deus, não pode pedir uma graça a seu deus. — Sua voz era amarga, uma voz que não parecia da mãe-de-santo Don’Aninha. — Não se contentam de matar os pobres à fome. Agora tiram os santos dos pobres… — e alçava os punhos.”
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“— Ainda não vai dizer? — perguntou o diretor do Reformatório. — Isso é só o começo.
— Não — foi tudo o que Pedro Bala disse.
Agora davam-lhe de todos os lados. Chibatadas, socos e pontapés. O diretor do Reformatório levantou-se, sentou-lhe o pé, Pedro Bala caiu do outro lado da sala. Nem se levantou. Os soldados vibraram os chicotes. Ele via João Grande, Professor, Volta Seca, Sem-Pernas, o Gato. Todos dependiam dele. A segurança de todos dependia da coragem dele. Ele era o chefe, não podia trair. Lembrou-se da cena da tarde. Conseguira dar fuga aos outros, apesar de estar preso também. O orgulho encheu seu peito. Não falaria, fugiria do Reformatório, libertaria Dora. E se vingaria… Se vingaria…
Grita de dor. Mas não sai uma palavra dos seus lábios.
(…)
Ouviu o bedel Ranulfo fechar o cadeado por fora. Fora atirado dentro da cafua. Era um pequeno quarto, por baixo da escada, onde não se podia estar de pé, porque não havia altura, nem tampouco estar deitado ao comprido, porque não havia comprimento. Ou se ficava sentado, ou deitado com as pernas voltadas para o corpo numa posição mais que incômoda. Assim mesmo, Pedro Bala se deitou. Seu corpo dava uma volta e seu primeiro pensamento era que a cafua só servia para o homem cobra que vira, certa vez, no circo. Era totalmente cerrado o quarto, a escuridão era completa. O ar entrava pelas frestas finas e raras dos degraus da escada. Pedro Bala, deitado como estava, não podia fazer o menor movimento. Por todos os lados as paredes o impediam. Seus membros doíam, ele tinha uma vontade doida de esticar as pernas. Seu rosto estava cheio de equimoses das pancadas na polícia, e desta vez Dora não estava ali para trazer um pano frio e cuidar do seu rosto ferido.”
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“A voz o chama. Uma voz que o alegra, que faz bater seu coração. Ajudar a mudar o destino de todos os pobres. Uma voz que atravessa a cidade, que parece vir dos atabaques, que ressoam nas macumbas da religião ilegal dos negros. Uma voz que vem com o ruído dos bondes, onde vão os condutores e motorneiros grevistas. Uma voz que vem do cais, do peito dos estivadores, de João de Adão, de seu pai morrendo num comício, dos marinheiros dos navios, dos saveiristas e dos canoeiros. Uma voz que vem do grupo que joga a luta da capoeira, que vem dos golpes que o Querido-de-Deus aplica. Uma voz que vem mesmo do padre José Pedro, padre pobre de olhos espantados diante do destino terrível dos Capitães da Areia. Uma voz que vem das filhas-de-santo do candomblé de Don’Aninha, na noite que a polícia levou Ogum. Voz que vem do trapiche dos Capitães da Areia. Que vem do Reformatório e do Orfanato. Que vem do ódio do Sem-Pernas se atirando do elevador para não se entregar. Que vem no trem da Leste Brasileira, através do sertão, do grupo de Lampião, pedindo justiça para os sertanejos. Que vem de Alberto, o estudante pedindo escolas e liberdade para a cultura. Que vem dos quadros do Professor, onde meninos esfarrapados lutam naquela exposição da rua Chile. Que vem de Boa-Vida e dos malandros da cidade, do bojo dos seus violões, dos sambas tristes que eles cantam. Uma voz que vem de todos os pobres, do peito de todos os pobres. Uma voz que diz uma palavra bonita de solidariedade, de amizade: ‘companheiros’. Uma voz que convida para a festa da luta. Que é como um samba alegre de negro, como o ressoar dos atabaques nas macumbas. Voz que vem da lembrança de Dora, valente lutadora. Voz que chama Pedro Bala. Como a voz de Deus chamava Pirulito, a voz do ódio o Sem-Pernas, como a voz dos sertanejos chamava Volta Seca para o grupo de Lampião. Voz poderosa como nenhuma outra. Porque é uma voz que chama para lutar por todos, pelo destino de todos, sem exceção. Voz poderosa como nenhuma outra. Voz que atravessa a cidade e vem de todos os lados. Voz que traz com ela uma festa, que faz o inverno acabar lá fora e ser a primavera. A primavera da luta. Voz que chama Pedro Bala, que o leva para a luta. Voz que vem de todos os peitos esfomeados da cidade, de todos os peitos explorados da cidade. Voz que traz o bem maior do mundo, bem que é igual ao sol, mesmo maior que o sol: a liberdade.”