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não há nada, no mundo, que possa fazer eu deixar de cantar (o canto da poesia).
não há nada no mundo — nem nunca haverá.
musa, deusa responsável por ventar as palavras ao pé do meu ouvido, ensina-me o canto venerável (que se deve respeitar, digno de veneração) & antigo.
o canto venerável & antigo: o canto da poesia, no mundo desde priscas eras, no mundo desde tempos remotos, o canto para todos porque por todos entendido, o canto claro feito luz do dia.
musa, ensina-me o canto, este, o justo irmão das coisas, o canto que cante a vida (a planta, a pedra, a parede da casa primitiva, o murmúrio do mar que a cercava, a janela quadrada, o quarto branco, a manhã polida & seu brilho), canto incendiador da noite (momento intenso, em que a deusa musa venta, ao pé do meu ouvido, os seus desejos de linguagem), e canto secreto — impenetrável, que não se revela — na tarde (momento em que o canto não se revela porque em estado de maturação, em estado de sentidos, percepções, momento em que o canto ainda abstrato, a pré-linguagem).
musa, ensina-me o canto em que eu mesmo regresso, sem demora & sem pressa, no tempo certo/ideal, tornado planta ou pedra, ou tornado parede da casa primitiva, ou tornado o murmúrio do mar que cercava a casa primitiva: musa, ensina-me o canto profundo, o canto que canta muitas vozes (a voz da planta, da pedra, da parede da casa primitiva, do murmúrio do mar que a cercava, da janela quadrada, do quarto branco, da manhã polida & seu brilho), tendo, como instrumento para cantar, a minha (pouca) voz.
musa, ensina-me o canto onde o mar, fascínio maior da minha existência, respira, coberto de brilhos (brilhos que são o reflexo, na superfície marinha, tanto da luz solar quanto da luz lunar).
musa, ensina-me o canto da janela quadrada & do quarto branco — que eu possa dizer, com teu sopro inspirador, como a tarde, ali, no quarto branco, tocava na mesa & na porta, no espelho & no corpo, e como os rodeava.
que eu possa, musa, dizer o canto das coisas, pois o tempo me corta, o tempo me divide, o tempo me atravessa, e me separa, vivo, do chão & da parede da casa primitiva (o caráter da identidade se dá pelo caráter da alteridade: eu sei quem sou porque sei que não sou o chão nem a parede da casa primitiva; deles me destaco, deles me separo).
musa, ensina-me o canto venerável & antigo, o canto da poesia, para prender o brilho desta manhã polida, manhã luzidia, límpida em sua luminosidade, manhã que pousava docemente os seus dedos na duna & que caiava as paredes da casa limpa & branca.
musa, ensina-me o canto que me corta a garganta.
musa, ensina-me o canto que em tudo me encanta.
para que eu me torne, vidafora, musa, um instrumento do teu prazer & da tua glória.
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Poemas escolhidos. seleção: Vilma Arêas. autora: Sophia de Mello Breyner Andresen. editora: Companhia das Letras.)
MUSA
Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
O canto para todos
Por todos entendido
Musa ensina-me o canto
O justo irmão das coisas
Incendiador da noite
E na tarde secreto
Musa ensina-me o canto
Em que eu mesma regresso
Sem demora e sem pressa
Tornada planta ou pedra
Ou tornada parede
Da casa primitiva
Ou tornada o murmúrio
Do mar que a cercava
(Eu me lembro do chão
De madeira lavada
E do seu perfume
Que atravessava)
Musa ensina-me o canto
Onde o mar respira
Coberto de brilhos
Musa ensina-me o canto
Da janela quadrada
E do quarto branco
Que eu possa dizer como
A tarde ali tocava
Na mesa e na porta
No espelho e no corpo
E como os rodeava
Pois o tempo me corta
O tempo me divide
O tempo me atravessa
E me separa viva
Do chão e da parede
Da casa primitiva
Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
Para prender o brilho
Dessa manhã polida
Que poisava na duna
Docemente os seus dedos
E caiava as paredes
Da casa limpa e branca
Musa ensina-me o canto
Que me corta a garganta
Maravilhoso!
Que bom saber que gostou, Rosania!
Abraço grande!